O ano da desilusão
Os dicionários dizem que a função do eufemismo é suavizar uma expressão, reduzindo a carga negativa de algum acontecimento ou fato. Pessoalmente, considero que os eufemismos servem para nada mais que adiar a percepção de algo. Em algum momento, todo o peso do que adiamos sentir nos afeta. Não nego que em alguns momentos a gente precisa ver as coisas com mais suavidade porque ainda não nos sentimos preparados para algo. Mas quando é que vamos estar enfim preparados pra qualquer coisa? Nós nunca estamos. E não é melhor a gente encarar os fatos com o máximo de verdade agora pra não sermos julgados depois, pela história?
O mundo, por exemplo, não estava preparado para uma pandemia. Com toda a sinceridade, pra mim, esse tipo de coisa estava num passado já superado ou numa ficção científica bem fantasiosa, mas um vírus nos pegou de surpresa e levou muitos de nós, contagiou a alguns tantos outros e se espalhou numa rapidez proporcional à nossa ignorância. Não sou uma pessoa alienada da realidade: eu sei como a nossa sociedade nos retira o que há de humano, nos fazendo crer em competição e não na cooperação, em individualidade como se o indivíduo não fosse parte de um todo. Mas fui pega de surpresa pela falta de uma consciência geral de como nossa saúde é coletiva (e nossa evolução em muitos outros aspectos também é, mas isso é assunto para outro texto). E essa inconsciência se manifesta na forma de eufemismos, adiamentos da verdade.
Muita gente prefere fingir que não vê a gravidade da situação para não ter que abrir mão de seus privilégios individuais. Eu não vou nem falar sobre o papel do governo em agravar o clima de tanto faz, porque, parafraseando Criolo, é humilhação demais que nem cabe nesse parágrafo. Pra essas pessoas, o ano de 2020 foi um ano difícil, mas não muito mais do que isso. Que eufemismo covarde e egoísta!
2020 foi um ano terrível. Cruel em todo seu capitalismo, horrível em toda a sua ignorância, mau de todas as maneiras possíveis. Foi ruim e trouxe desgraças distópicas para muitos, para que alguns poucos pudessem viver suas utopias particulares. Eu sei que tudo isso vai passar. Como vai ser depois que passar, não sei. Mas eu não vejo a hora de que isso acabe. Nem sei se vale o desgaste de mencionar como poderia estar acabando mais cedo ou pelo menos a catástrofe estaria mais amena se a gente cooperasse mais. Mas é isso: não cooperamos em nada ou muito pouco e agora esse pesadelo vem se arrastando mais do que deveria.
Eu me vejo normalmente como uma pessoa cheia de esperanças. 2020 trancou minha esperança de volta na caixa de Pandora. Eu sei que ela está lá, no fundo da caixa, esperando que o excesso de coisas ruins diminua para que ela volte a sair de lá. A esperança, eu sempre me esqueço, é algo que pode ser visto como ruim também! É ela que nos impede de desistir e como uma grande otimista que sou, ela às vezes me move à exaustão. Acho que também existe função para minha esperança indestrutível, mas eu talvez estivesse precisando dar liberdade pra sentir o cansaço de lutar. Não para parar, mas para descansar enquanto penso em outro movimento que me desgaste menos e que nos faça nos adiantar nesse campo de batalha que às vezes nós vemos que a vida é (eu nem acredito que ela seja sempre guerra, pra falar a verdade!). E enquanto vivi essa desilusão doída de ver que minha estratégia precisa ser reformulada e que a minha esperança precisava de um pouco mais de realidade, outras pessoas fizeram o movimento contrário. Se desapegaram do real pra viver a confortável ilusão do novo normal.
Existe toda uma discussão sobre o que era o normal de antes e se cabe a nós dizer que isso deve ser a norma. Também é cedo demais para aceitar tudo como está e aí eu fico irritada com a nossa acomodação de aceitar um novo normal que é muito parecido com o antigo normal: cruel, injusto e ruim para alguns, ótimo para outros pouquíssimos. O que mudou? Pra quem estava mal, piorou, pra quem estava bem (empresas, indústrias, bilionários), melhorou. E aí, eu, na minha desilusão sinto ainda mais dor em ver como estamos desunidos demais para lutar contra essa desigualdade.
Não posso negar que por alguns momentos, uma frestinha da caixa se abriu e eu pude ver a esperança lá dentro. Me motivei e eu sigo trabalhando pra não perdê-la por completo (acho que sou tão otimista que na verdade, nunca perdi de vista essa minha grande incentivadora). Confirmei também que as mudanças e a força se fazem coletivamente e foi muito bom me envolver nesses movimentos mesmo à distância, mesmo sem a coletividade real, presencial e completa.
Minha desilusão mudou minha perspectiva, mas eu não quero deixar que ela me abale. A escrita também tem me dado forças para momentaneamente esquecer, sem cair no eufemismo e na ignorância, tudo de tão ruim que aconteceu nesse ano. Sigo caminhando na corda bamba entre a desilusão e a esperança, sempre pra frente.
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