Primeira pessoa: A verdade é que eu sou gentil também.

Não cresci sendo sincera porque queria ser boa. Nunca senti que seria amada se mostrasse quem eu realmente era. Acreditava que o que eu tinha de ruim tinha que ficar escondido. Então, sempre tentei esconder aquilo que achavam que não iam gostar e fazia o máximo possível para ser uma criança obediente. Ser obediente era um valor importante na minha casa. E certamente tem a ver com a mentalidade de que crianças precisam servir cegamente aos pais, coisa que meus pais devem ter aprendido dos pais deles. Eu entendo de onde vem essa mentalidade e sei que meus pais certamente já transformaram muito o tratamento das crianças em relação ao modo como foram criados. Enfim, a mudança não foi suficiente para não me causar questões psicológicas. O rótulo que eu cresci acreditando que tinha que sustentar era o de uma filha boa e de obediente.

Todas as coisas que eu fiz que eram tecnicamente erradas eu fiz tão bem escondido que meus pais acreditaram na minha farsa de boa filha. Mais tarde, fui uma adolescente irritadiça, nervosa, mas parte desse nervosismo vinha justamente da pressão em agradar a meus pais, a quem eu achava que devia obediência em gratidão à vida que me ofereceram e todos os sacrifícios que fizeram para me dar o que me deram. Então, quando enfim ganhei mais independência e conhecimento de mundo fui entendendo que eu não precisava obedecer a tudo, que eu podia ter minha própria voz que nem sempre responderia a tudo com um sim.

Dizer não nem sempre é fácil pra mim. Contestar as razões, é mais difícil ainda. Meus questionamentos não são bem vistos por aqui, minha voz só é bem vinda quando me cedem espaço, fora isso, não é considerado coisa muito boa dizer o que penso, ainda mais porque o que eu penso costuma ser diverso das visões dos meus pais. Isso deve ser comum sempre que há uma diferença geracional. E eu também sei que pode ser só o jeito como eu me sinto e não o que de fato eles pensam. O fato é que, no passado, eu sempre me orgulhava de ser uma boa filha porque aprendi que um valor importante a se manter era a obediência. E além de ideias diferentes nem sempre aceitas, a partir do momento em que deixei de baixar a cabeça, meu tom de voz é policiado também.

Não é a toa que fritos são mais altos do que os sussurros. Eu digo o que penso com o máximo de controle que consigo. Mas às vezes eu preciso mesmo gritar, porque as palavras estão entaladas a muito tempo na garganta, e precisam daquele jeito bruto pra saírem do lugar. Elas não são rudes por si, ou pelo menos não é assim que as enxergo. Podem até ser secas, mas nunca sou bruta. Eu consigo escolher minhas palavras bem e tenho um compromisso de fidelidade com elas. Dou muita importância às palavras que uso e não costumo deixar escapar coisas que já tenho consciência de que machucam os outros. Quando eu falo, eu quero só dizer o que sinto e o que penso. Mas o tom de voz, a minha expressão facial, tudo isso é meio difícil de coordenar também. E claro, às vezes eu estou mesmo com outros sentimentos por trás das palavras, mas eu não posso ser julgada pelo que é tão subjetivo. Que avaliem apenas o que eu sou capaz de controlar. Mas não é assim. Sou muito chamada de grossa, falam que eu não sei conversar e, o pior, que eu escolho deliberadamente a grosseria. Eles não vêem que só estou discordando deles, sendo direta, reta e sincera. Eu não gosto de escolher a mentira, até porque sou transparente demais pra mentir. Não tenho a intenção de ser bruta. Mas talvez falar sempre envolva esse tipo de questão pra mim.

Esse novo título, recebido na idade adulta me dói um pouco. Eu gostava de me ver sendo perfeita, mesmo que fosse mentira. E agora que é verdade tudo o que eu digo, isso me rouba a possibilidade de ser vista como perfeitamente boa: minha contestação, meu tom de voz, minha assertividade e talvez a tal grosseria são visíveis agora. Isso não deveria ser um incômodo tão grande. Afinal, a realidade é imperfeita.

Mas eu ainda fico buscando a perfeição, às vezes sem perceber, às vezes como forma de compensação pela sinceridade lida como grosseria que já não consigo mais deixar de manter no meu dia-a-dia. Faço isso tentando ser como os outros, que considero possuidores desse rótulo que já não mais me pertence.

Ano passado, o filme "Um lindo dia a vizinhança" se tornou um dos meus favoritos da vida. Não pelo modo como é feito, mas pela história que conta. Mr. Rodgers existiu: era apresentador de um programa infantil que durou longos anos nos Estados Unidos e pregava a gentileza e a compreensão, acreditava que crianças precisavam ser ouvidas e não tratadas como inferiores, e ele pregava que todos os assuntos precisavam ser abordados com sinceridade e carinho. Essa abordagem, para ele, servia para adultos e crianças, afinal adultos são só crianças com questões mais complexas. Com sua paciência, ele tocava pessoas de todas as idades, ouvindo-as e tentando acolhê-las para compreendê-las. O personagem é interpretado por Tom Hanks, que é para mim uma já estabelecida referência visual de bondade e gentileza. Imediatamente eu tomei aquela história como uma referência de como eu gostaria de encarar a vida e as pessoas. Ao ver o documentário "Won't you be my neighbour?", tratando sobre o mesmo personagem de uma forma não ficcionalizada, a ideia da gentileza transformadora se reforçou em mim. Eu achava que ainda tinha um longo caminho a percorrer até chegar a ser como ele.

O Tom Hanks deve ser quase tão gentil quanto o Mr. Rodgers, na minha opinião.

Afinal, eu sou direta. Não gosto de mentiras, não falo meias-verdades pra agradar ninguém. Sou seca porque aprendi que quando não vou direto ao ponto, acabo cedendo mesmo sem querer e depois me sinto duplamente mal: primeiro, por ter aceitado algo que não quis, por ter sido fraca com a minha própria necessidade, depois por ter que fazer aquilo que não queria ter feito. É obvio que o que não faz diferença pra mim não vira motivo de discussão. Eu só brigo pelo que é importante: questiono só o que acredito que precisa ser questionado. Entendo as reações daqueles que não conseguem compreender esse jeito de ser, sei que tem gente mais sensível em pontos diferentes e, como parte da gentileza que já carrego em mim, tento me lembrar que todos estão fazendo o seu melhor. Então, algumas vezes eu me exalto, rebato quem também age assim, mas no fim, busco entender. Eu também me esforço o melhor possível pra acolher os sentimentos dos outros. Às vezes eles são feios, gritam, são de raiva e ódio. Nem sempre eu também estou disposta ou pronta para fazer isso, é claro. Sou humana também.

Ser humana é ser muitas coisas. Inclusive, ser gentil. Só que o rótulo que colocaram em mim me faz crer que por ser tantas outras coisas menos desejáveis para os outros me torna menos gentil. E menos humana.

Se você não sabe o que é BTS, está perdendo e recomendo que pesquise logo e entre nesse mundinho pois eu e o mundo todo ainda falaremos muito sobre eles. Entre criar as próprias músicas, fazer shows e quebrar recordes, os meninos do grupo coreano ainda estrelam alguns programas, entre eles o BTS In The Soop, reality show exibido em 2020, no qual os 7 rapazes simplesmente viajam para uma casa de campo onde passam o tempo fazendo tudo que previamente haviam solicitado para a temporada no meio do mato. J-hope é um rapaz gentil e carinhoso que sempre levanta o astral de qualquer pessoa que eu já tenha testemunhado. No programa, ele me fez chorar porque pegou uma calça pro Jungkook (o mais novo dos integrantes, às vezes tratado como um irmão mais novo, quase um bebê pelos outros integrantes). Eles iam fazer uma refeição ao ar livre, e antes que o mais novo saísse, j-hope chegou com a calça para aquecer o mais novo. Eu sou uma pessoa naturalmente emocionada por coisas pequenas, mas essa realmente me pegou. Eu já considerava o j-hope mais um exemplo de como ser gentil, como o Mr. Rodgers, mas ver um homem adulto pegando uma calça para um outro homem adulto não sentir um friozinho me desmanchou (ou talvez seja a pandemia, não sei). Ele escolheu o cuidado e eu desejei ser mais como ele. Embora eu nunca possa ter um sorriso como o dele. Mas talvez meu sorriso já seja mais próximo do dele do que eu poderia imaginar.

O sorriso dele tem formato de coração!


Em um dos últimos episódios de Run Bangtan (outro reality show estrelado pelo BTS, no qual eles basicamente ficam jogando coisas com regras confusas), os meninos participaram de uma dinâmica em que tinham que contar um defeito deles e o j-hope disse que estava sempre sorrindo nos palcos, em frente às câmeras e com os amigos, mas quando chegava em casa, seu carisma se esgotava e seu sorriso sempre brilhante se apagava. Ele ficava mais quieto e os pais dele chegavam a se preocupar com isso. Essa é uma questão que fala tanto comigo! Como eu disse, eu admiro muito o j-hope, meu sentimento sempre é de vontade de ser mais como ele, como se eu já não fosse uma pessoa gentil, boa e divertida. E aí, eu percebi que eu já sou como ele. Ele não é o tempo todo sorridente, gentil e alegre. Os outros meninos costumam dizer que ele é muito sério e nem sempre se revela em frente às câmeras (o que é um comportamento natural e compreensível). Sei que isso deveria ser óbvio, mas é que costumamos tomar apenas um ou alguns lados das pessoas como reais e deixamos de ver as sombras deles mesmos. Conosco mesmos, o processo é similar. Eu estava deixando na sombra a minha gentileza para assumir apenas o rótulo que me deram: de grossa, desnecessariamente sincera, intolerante e gratuitamente questionadora. 

A última personagem visitada nessa minha jornada em busca da minha minha gentileza interior é ficcional. Pose é uma série que se passa no fim dos anos 80 e começo dos anos 90 e retrata a vida da comunidade LGBTQIAP+ (que até então nem sonhava com essa sigla cheia de letras) em Nova Iorque. Na época, o surto de HIV, AIDS, ignorância e preconceito estavam matando a comunidade LGBT, e nossa protagonista, Blanca Evangelista, é uma mulher trans que acaba de descobrir que é portadora do vírus. Diante do confronto direto com a ideia da morte, Blanca decide fundar sua própria House, uma casa que abriga membros daquela comunidade marginalizada e compete por troféus em desfiles de moda e dança nos bailes da noite da cidade. Inspiradas em histórias reais, as fundadoras das Houses são chamadas de mães e ali fundam suas famílias que acolhem jovens sem-teto, expulsos por suas famílias, excluídos da sociedade e muitas vezes levados à recorrer à prostituição para que sobrevivam.

Me considero mais uma filha da House of Evangelista!



Blanca encarna o arquétipo mais típico da mãe: acolhedora, receptiva, compreensiva e encorajadora de seus filhos em suas ambições e sonhos. Blanca é uma personagem gentil, cuidadosa e que dá todo o apoio possível aos membros de sua casa. Como muitas mães, ela briga para que seus filhos tenham bolsas de estudos para realizarem seus sonhos acadêmicos, para que saiam da prostituição, arrumem empregos, se mantenham longe das drogas e se protejam contra a epidemia de HIV, apesar do preconceito e desinformação que existiam na época. Blanca é o que toda mãe deveria ser, mesmo que ela mesma não tenha tido o mesmo apoio de sua mãe biológica ou da mãe de sua House original.

Blanca, no entanto, não é uma mulher pacífica, que aceita aquilo que lhe é imposto. Ela confronta um bar gay que não aceita a presença de mulheres trans, mesmo ela sendo parte daquela comunidade também, e acaba sendo presa por isso. Mais tarde, briga por seus filhos e com seus filhos, sempre porque acredita no melhor para eles. Ela erra também, se contradiz e quando o faz pede desculpas a quem magoou para seguir lutando: por sua própria vida, pelos direitos de sua comunidade, pela união das pessoas marginalizadas, por seu salão usurpado por uma senhoria preconceituosa e pró-gentrificação que resolve dar nela um golpe quando descobre que Blanca é uma mulher trans. Blanca não é pacífica, mas é uma das personagens mais doces que eu já tive o prazer de conhecer. No começo da série, eu pensava também "quero ser como Blanca", mas então entendi que talvez eu já seja como ela. Eu também brigo, sempre pelo que acredito ser o certo. Eu já ajudo e acolho as pessoas, sempre gostei de ser essa figura maternal, e estou sempre cercada de amigos mais novos, talvez sendo exatamente como Blanca. Eu encorajo, eu brigo por meus amigos, mas às vezes brigo com eles quando acredito ser o melhor, mas quando erro também peço desculpas. Eu gosto do papel de consolar, gosto de ouvir, de acolher, de tentar aconselhar. Mas também brigo, como Blanca Evangelista.

Ela e j-hope me ajudam relembrar que somos múltiplos. Não somos apenas pessoas gentis ou brigonas. Eu, pelo menos, sou gentil & brigona.  Uma coisa não anula a outra. E eu me esqueço que eu posso simplesmente ser assim e quem convive comigo é que tem que lidar com essa duplicidade. Afinal, quem escolhe conviver com outro ser humano tem que entender que nenhum tem só um lado. Se eu me lembrar disso, passa a ser questão para os outros esse incômodo diante de um lado meu que os impede de ver outro lado.

Nesse tempo todo em que eu não conseguia enxergar as minhas características aparentemente opostas, sem entender que eram complementares, eu pensava que uma coisa anulava a outra. Antes, entendendo que eu seria mesmo considerada como uma pessoa ruim, eu não me importava em ser de fato pouco gentil e talvez até tenha alimentado esse lado algumas vezes. Agora, diante do mesmo entendimento, percebo como negligenciava o lado bom porque pensava que só podia ser um ou outro. Essa mentalidade cristã de que só se pode ser bom e almejar ser bom como o suposto Deus, é injusta até mesmo com Jesus, que era um homem com valores bons mas métodos que são considerados ruins ou impróprios. Cristo era bondoso e gentil, mas também furioso e contestador. Não foi ele que ficou bravo com os vendilhões do templo? Sua crucificação não aconteceu porque ele contestava as autoridades e as injustiças? Jesus, como todo mundo, tinha dentro dele o bem e o mau, yin e yang, o certo e o errado. E, bem, por que é que conceitos como bem e mal, bom e mau deveriam importar para definir quem somos, se eles são tão inventados quanto a ideia de que somos só isto ou aquilo?

Me desculpa, Cecília Meireles, eu sou isto & aquilo: A verdade é que eu sou gentil também.

Comentários

Postagens mais visitadas