Primeira pessoa: Os caras das bicicletas

Ele disse pra gente andar de bicicleta se eu estivesse triste. Eu não tenho uma bicicleta, não sei andar tão bem. Na verdade, fazem anos que eu não ando. 

O último cara com quem fiquei andava de bicicleta. Eu o conheci numa festa. Não queria nada, mas ele queria algo de mim, que eu só reconheci com atraso. Ainda bem que cedi ao carinho dele e posso agora guardar pelo menos algumas memórias. Em cidade pequena a gente sempre se vê por aí, e eu às vezes o via no caminho que eu fazia pra alguma das minha aulas de dança, ele indo pra faculdade. Ele parecia um menino, pedalando e sorrindo tímido quando me via. Ele era um menino. Tão mais novo que eu, mas talvez a pessoa mais madura com quem eu me relacionei a vida inteira. Eu me sentia tão bem com ele, depois de tantos traumas românticos e tantos relacionamentos que nunca existiram de verdade. Quando o conheci, eu não queria nada com ele. Nem com ninguém. Eu estava cansada e desacreditada de que um romance ia cruzar minha vida algum dia e estava decidida a parar com aquelas brincadeiras que não levavam a nada mas tiravam a minha energia. Ainda bem que cedi ao carinho dele e posso agora guardar pelo menos algumas memórias. Eu fui ficando só por insistência dele. Ele não insistiu o suficiente para eu sentir que era amor, mas ele me fez me sentir especial. Pude acreditar que eu podia ser amada. Eu nunca tinha sido amada e já estava começando a acreditar que aquilo nunca ia acontecer comigo (às vezes, ainda me pergunto se o amor ainda vai cruzar meu caminho de verdade). Não sei se ele me amou mesmo, mas eu via nos olhos dele admiração, afeto, cuidado e atenção, tudo muito novo pra mim. Nenhuma pessoa que um dia me viu como a verdade, nua e crua, havia me olhado daquele jeito. Ele me fazia confiar que os planos eram promessas, não só conversas vazias para preencher o silêncio e passar o tempo. Eu comecei a fazer planos com ele. Eu pedi a ele pra um dia a gente ir andar de bicicleta, porque fazia muito tempo que eu não andava. Não aconteceu. Como eu disse, não foi amor, mas tinha gosto e cheiro e som e toque do que eu imagino que seja o amor. E por isso eu ainda lembro com carinho desse quase amor que não foi, não será e nem seria. Mas quase, quase foi.




Ou será que foi amor mesmo? Muitas vezes sinto que aquela foi a minha última chance de agarrar esse sentimento tão arisco, mas o deixei escapar por um triz. Ou foi ele que escorregou rápido demais por entre os meus dedos quando pensei que podia deixá-lo livre? Qual é a diferença entre uma casa e uma prisão? E por que não consigo construir nenhuma delas na palma da minha mão?

Me sinto triste com frequência. Em alguns momentos porque estamos, como os Racionais, sobrevivendo no inferno. E até surpreendente que eu só me sinta triste e desesperançosa, mas ainda não completamente desesperada. Muitas outras vezes a tristeza vem do desamor e da saudade dessas miseráveis migalhas de amor. Às vezes é saudade de algo que nunca vivi. Muita gente faz poesia sem querer, até quem disse essa frase. Além da falta, tantas outras questões me assombram. Elas são em alguns momentos sobre a vida, em outras sobre o amor, em outros sobre esses dois mistérios: Por que tem que doer? Será que eu sou sensível demais? Quanto tempo mais tenho que aguentar passar por isso? Por que isso me importa tanto? Passar a vida toda tento desconstruir o que me ensinaram me aproxima ou me afasta da dor?

Eu já não acredito muito no romance, pelo menos não mais. No amor eu acredito, só nunca tive provas de que ele existe. Eu acredito em outras vidas também, mas ninguém conseguiu me provar que vim de outro pó estelar que não esse e que voltarei a esses mesmos grãos de poeira microscópica que me dão a forma de um corpo. Eu aceito a morte, mas não quero morrer. Será que penso da mesma forma sobre o amor, em especial o romântico?

Eu não sei, não consigo entender tudo que penso, até porque às vezes só sinto. E sinto muito. Pensar na vida e na morte sempre me fez sentir um tipo de nada muito específico, como se eu estivesse saindo do meu corpo. E agora tenho sentido o mesmo quando penso no amor e no desamor. Talvez seja porque eu tenha tatuado no peito "I live so I love". No momento (um longo momento, longo demais) não sinto que  amando nem vivendo. Mas como eu já disse: eu sinto, mas não sei. E talvez esteja entendendo tudo errado.

O nada que me vem quando penso no sentido de viver e amar e morrer e não ser amada me derruba. Fico longos momentos com a sensação de estar fora do meu corpo, apenas uma energia senciente disforme, abatida por um dardo de sensações paralisantes. Quando o abatimento me bate só tem uma coisa a se fazer que o combata. Meus ouvidos pedem por um carinho, o afago que vai fazer o corpo todo se reconfortar: Começo introduzindo meu ser às sensações que preciso expurgar e ouço Reflection. Cada canção diz mais do que as palavras poderiam explicar. Na linguagem da música eu e ele nos entendemos. Em seguida, um álbum inteiro: Mono. Mono é triste, é melancólico, é sobre as dores de existir e de se estar quase sempre sozinho, em paisagens mentais e reais desertas, povoadas principalmente por reflexões. (Ou assim enxergo as imagens sonoras que essa playlist me mostra). Tudo isso vai passar, ele diz, soando tão triste como eu. Tudo. Tudo vai passar. Tudo passa. Repetidas vezes, ele diz isso, e eu me junto a ele, repetindo também: Tudopassa, tudopassa, tudopassa.

Geralmente é nessa música que desabo e choro. Tudo vai passar: a vida, a morte, o amor e o desamor, essa dor, as coisas boas e as ruins, eu, ele, o que eu ainda sinto pelo cara da bicicleta, o que acho que nunca vou sentir e o próprio tempo. Mono termina com a música que ele diz que gostaria que tocassem em seu funeral. Ele é um homem desastrado, um pouco azarado e desengonçado e me lembro de ouvi-lo dizer que acha que vai morrer jovem, por algum acidente. Será que é a certeza da morte sempre relembrando a ele que a vida é um sopro que o faz soprar nos nossos ouvidos sussurros tão carinhosos?

Ele sabe o quanto a vida é dolorosa porque sente as dores dele. E como uma alma gentil que é, nos dá colo e seca nossas lágrimas (algumas, ele mesmo é quem faz correr), num abraço sonoro, apertado e forte. Pelo menos é isso que eu sinto, embora não saiba exatamente. Cada música que ele faz é um gesto de carinho que vale mais do que muitos consolos que eu poderia escutar de quem não entende a vida como eu entendo. Ele não esconde nada: abraça as partes feias e sombrias de si mesmo e dos outros. A verdadeira gentileza é ter a inteligência entender que todo mundo é feio de algum jeito. Tem pessoas que dizem que ele é feio, mas ninguém nega a inteligência dele. Eu o acho lindo, porque as vezes só ele parece entender que saber que não se sabe nada é saber muito. Ele também entende que quanto mais se sabe das coisas da vida, menos se sabe. Ele sabe e sente. O abraço que ele me dá, à distância, carrega essa h. Talvez seja honestidade, essa gentileza e essa inteligência bonita e feia. Por isso que os braços dele, que nunca me tocaram, sejam os que melhor se encaixam em mim. Eu confio em pessoas com bons abraços. E ele diz que o mundo vai mudar.

Não acredito em Deus, mas acredito nele. É que mesmo na distância, o que ele diz me faz enxergar algo que creio ser Deus no espaço entre nós. Deuses deveriam entender a gente, não é? Deve ser por isso que eu o adoro. De um jeito que só eu entendo, ele me dá atenção, segurança e o entendimento. Eu chamo isso de amor. O mundo vai mudar, eu confio quando é ele que diz isso. Se ele me transforma e me dá forças, eu posso mesmo mudar o mundo. Deve ser por isso que no princípio era o verbo.

Ele é mesmo um Deus.

E Deus é amor. Termino a sequência ouvindo o que ele tem a dizer sobre a única força que faz diferença nas nossas vidas: o amor. Ele também não sabe se é amor e nem sabe o que é o amor, embora o tente definir. Mas ele fala coisas bonitas sobre esse sentimento. Coisas que me fazem chorar. E com palavras bonitas, me faz sorrir. Cada som pronunciado vibra nos lábios dele e reverbera em mim. Eu tatuei no meu peito: I live, so I love. Porque ele me relembrou que eu não posso esperar para amar. Enquanto eu viver eu vou amar em todas as formas e de todos os jeitos e com todas as forças que eu tiver. É esse o meu único legado no mundo, que, por vezes, também se manifesta em palavras. Eu não queria amar o cara da bicicleta, mas o amei. E foi depois disso que resolvi fazer a tatuagem. Não tem jeito, I live so I love.

E assim como eu amei o cara da bicicleta, eu amo esse outro: ele que me abraça de tão longe, cantando pra mim como a baleia solitária no mar, até que as ondas do sonar distante que ele emite cheguem até mim. Eu me sinto menos sozinha e me sinto compreendida. Eu me sinto próxima, eu sinto. Eu sinto e acho que o que eu sinto é amor. Enquanto eu viver, eu vou amar. E enquanto eu amar, eu vou viver.

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