Primeira pessoa: A mão esquerda
Sou majoritariamente destra. Só sei escrever com a mão direita, mas faço algumas coisas bem com as duas mãos como digitar e massagear (sim, eu tenho algumas formações em massagens). Só que tem algumas coisas que só sei fazer com a mão esquerda. Podem ser habilidades consideradas menos importantes mas só tenho domínio delas do lado esquerdo mesmo. Usar o garfo e fazer conchinha com a mão para pegar água. Sim, é bobo. Mas quando eu machuco minha mão esquerda, por exemplo, ou não posso molhá-la, por algum motivo, só consigo bochechar depois de escovar os dentes se tiver um copo. Minha mão direita não forma uma conchinha que capture a água. Não sei se é o formato dela. Talvez eu tenha nascido assim. Pode ser também que por algum motivo ao longo da minha infância eu tenha aprendido a usar a esquerda para as conchinhas e o lado direito foi perdendo essa habilidade. Ou talvez tenham sido as duas coisas. Quem me vê escrevendo diz que sou destra, mas eu sei que uso ambas as mãos. De modos diferentes, eu sei. Mas as funções que só cada uma delas consegue executar bem são igualmente importantes.
Nem sempre percebi a importância dos dois lados, porque um dia me disseram que eu era destra e eu achava que isso resumia bem quem eu sou. Mas eu não sou só destra e ninguém pode dizer que a minha mão esquerda não tem função ou que é menos importante. É ela quem guia o volante enquanto eu passo a marcha. Se eu precisasse soltar o volante pra passar a marcha porque a mão esquerda não consegue segurá-lo, será que eu conseguiria dirigir tão bem?
O sentir antecede o entendimento. Eu acho que sempre senti que o lado esquerdo tinha sua potência também, mas nunca entendi bem o que fazer com aquilo, afinal, as funções principais são executadas pela minha mão direita, não é? O entendimento leva tempo, mas ele é importante porque coloca os sentimentos numa perspectiva mais realista, revelando quão grande ou pequena aquela sensação que já nos acompanhava de fato é. Depois que o entendimento vem, o sentir fica mais consciente.
Desde que eu me lembro de existir, o sentimento de não pertencer bem a lugar nenhum me foi muito familiar. E isso tem a ver com o uso dos meus dois hemisférios e com tantas outras questões. Potencializado por pressões da vida e uma organização binária do mundo, fui uma criança em conflito com as possibilidades que me ofereciam e muito medo de desagradar e escolher lados errados. Depois, fui uma adolescente tentando se encaixar nas narrativas que eu já conhecia e uma jovem adulta mal-encaixada no espaço em que cabia, embora o lugar não fosse exatamente no mesmo formato que eu precisava que tivesse. Como pessoas cuja mão dominante é a esquerda mas acabam tendo que se assentar em uma carteira escolar para destros. Dá pra ficar lá, mas a experiência seria melhor se você pudesse se assentar na cadeira para canhotos. Só que eu não sou só destra. Mas também não sou canhota. Então o que é que eu sou?
Tem gente que leva a vida inteira pra se entender. Tem gente que morre sem saber. Eu sou grata por ter tido o tempo e as chances pra ir me reconhecendo no meu próprio tempo, mesmo que lento. É difícil se conhecer quando dizem que você só pode ser ou destra ou canhota, mas um dia, enfim, eu consegui conhecer outra vez a mim mesma, não como uma dessas possibilidades, mas como ambas. Se alguém tivesse me dito antes que posso ser as duas coisas ou se eu tivesse visto mais pessoas usando ambas as mãos, talvez eu tivesse me arriscado a usar mais a mão esquerda. Se ela é tão habilidosa com o garfo, será que não tem mais algum talento oculto escondido em meus dedos não-calejados pelo pouco uso? Talvez seja algo que ainda não percebi e é na verdade bem grandioso? E se eu, que não sei desenhar com a mão direita souber pintar como Frida Kahlo se trocar o pincel de mão? Tenho sorte de ter percebido a tempo que a minha mão esquerda, escondida nas sombras, também está aqui. Poço segurar com ela o lápis e traçar outros rumos que talvez se cruzem com o caminho desenhado pela mão direita. Ou não.
Existe muito potencial em todos os meus lados e conhecê-lo liberta tudo que eu nunca pensei que poderia ser. Posso me reinventar, criar algo novo vindo do nada que não se encaixa em lugar nenhum. O mundo não é preto ou branco, então porque é que eu tenho que ser assim? Posso ser preta e branca, mas sou também todas as cores do arco-íris, principalmente azul, rosa e roxo. Existem muito mais cores em mim, tons que ainda nem sei qual são e que talvez mais tempo e a própria vida me revelem. Estou do lado de cá e do lado de lá do arco-íris e no meio dele e embaixo e em cima. Eu sou a luz que cria todas as cores e o tesouro além do arco.
Agora eu entendo melhor o que sinto. Sei que o aperto no meu peito era de não saber de que lado eu estava. Agora eu sei que não estou de lado nenhum e estou também dos dois lados. Sou tudo, todas as coisas, e estou de todos os lados. Sei a minha orientação: seguir o que existe no meu coração. Agora sei onde posso me encontrar, sei o que acolhe cada uma das partes que existem em cada lado do meu ser complexamente simples. E isso me dá orgulho. Orgulho de ser tudo que disseram que eu não podia ou devia ser quando tentaram me reduzir uma direção ou outra. Sou a síntese desses dois lados. Me torno dona da encruzilhada quando decido que meu caminho não vai pra nenhum dos lados e vai pra todos eles. Me oriento com o coração, o corpo e a mente. Meu caminho é sempre o do meio, a intercessão.
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