Primeira pessoa: Café quente, coração quente

Quando eu era criança, não gostava de café. Lembro de achar o sabor ruim, em especial porque meu paladar era adoçado por chocolate, suco adoçado e refrigerante. O café era amargo demais, mas ele estava lá na minha infância.

Me lembro da minha mãe, que saía pra trabalhar, me fazendo tomar uma xícara daquele líquido quente antes que ela saísse, pra acordar e não perder o horário do inglês. Eu ia sozinha pra aula, pegava o ônibus do outro lado da avenida movimentada que a minha rua cruzava. Até quando eu não tinha inglês, tinha que tomar aquela droga. Mesmo fazendo a tarefa de noite, parecia muito ruim uma criança acordar tarde pra ver desenhos. Ela tinha que estar acordada e pronta. Exatamente pra quê, não sei. O dopping não funcionava. Eu continuava com um sono forte como a morte todas as manhãs. Quando podia, ainda dormia. Quando não podia, reclamava do sono e de ter que tomar café.

duas xícaras transparentes de café preto sobre mesa de madeira

Depois, adolescente, aprendi que aquela era uma bebida que combustível para escritores. As séries, os filmes, os livros me diziam que um escritor estava sempre acompanhado de uma xícara estimulante e quente. Dei mais algumas chances ao café inspirada nos meus heróis da escrita e nas pessoas ao meu redor que usavam o café como um dopping supostamente chique que mantinha as pessoas acordadas para estudar de um modo saboroso. Eu tentei algumas vezes. Quis fazer igual, mas não se desfaz um paladar infantilizado e memórias ruins tão fácil. Naquele período, não consegui me habituar, mas já comecei a ver o café como algo requintado e desejado. Mas ainda, uma bebida de pessoas adultas. Nessa época, só me lembro de tomar na casa da minha vó, quando eu já me sentia grande demais para o o achocolatado. Café tem cheiro de casa de vó.

O aroma do café sempre me trazia uma sensação acolhedora, mesmo que eu ainda não estivesse pronta pro sabor. Aprendi a tomar enfim o cafezinho na época da faculdade. Não pelo sabor, mas pelo efeito. Comecei a trabalhar logo que entrei na faculdade. Só tive o primeiro semestre de folga. Já no segundo período, fui seduzida pela independência de uma bolsa como monitora, não aproveitei o meu privilégio de filha da classe média e emendei em outros trabalhos, dando aula de inglês para crianças, sendo monitora e enfim dando aulas no mesmo curso de inglês ao qual eu ia, dopada pelo café, lá no fim da infância. Eu precisava me manter acordada nas aulas noturnas, depois de um turno de esportes e outro de trabalho. Era um café ruim, servido em copo de plástico, mas eu comecei a gostar daquela bebida dos intervalos. Talvez minhas sinapses enfim estivessem prontas pra apreciar o sabor.

No trabalho, tomava diariamente (as vezes duas, três vezes por dia!) o melhor café caseiro que existe, na minha opinião. Nunca soube o segredo, já que o pó era o mesmo comprado na minha casa. Talvez o segredo não estivesse dentro das xícaras. 

Ao redor delas tinha desabafo, fofoca, tanta conversa leve e gostosa, algumas profundas, outras pesadas e muita risada. A copa apertada é onde eu fiz o melhor que aquele trabalho me permitiu: me conectar com as pessoas cujos nomes ficavam marcados em suas canecas próprias. Não que eu não me conectasse com os alunos também, mas a presença deles era tantas vezes fugaz. Nos intervalos das aulas, eu às vezes tomava café com meus adolescentes já acostumados a usar essa droga já que, nossa, eles estudam cada vez mais. Enquanto eu estava na copa, meus alunos menores chegavam para as aulas, vinham me dar um abraço, voltavam a brincar com os colegas e perguntavam se eu já estava indo abrir a sala. Eu lembro daquela copa com tanto carinho!

Café também tem cheiro de Buenos Aires, o lugar que mais amei no mundo e onde eu, com raízes tão mineiras fincadas na terra, não me importaria de viver por um tempinho bom. Me lembro das medias lunas e das torradas servidas no hotel onde me hospedei com a minha irmã. Era um tempo tão bom que eu fui pra fora do país várias vezes e, com salário de monitora, cheguei a pagar pra viajar com a minha melhor e mais antiga companhia nesse mundo. Eu queria estar agora tomando um café em Buenos Aires.

Me tornei depois dessa trajetória, uma pessoa que toma café com os amigos. Tenho uma amiga muito diferente de mim, mas com quem converso tanto e sobre tantas coisas e nossas melhores conversas aconteceram por cima de xícaras fumegantes de algum café gourmet. Tenho uma outra amiga, também tão diferente de mim e que admiro tanto por ser uma mulher expressiva, uma ótima mãe e muito corajosa. Tomávamos café na escola em que nos conhecemos, tomamos café juntas quando saímos de lá. Ela foi uma das poucas pessoas cuja amizade verdadeira sobreviveu à minha saída do emprego antigo. Um outro amigo, a pessoa em que eu mais confio no mundo, exceto pra responder minhas mensagens imediatamente, é a pessoa com quem eu desejo tomar café toda hora. A gente conversa tanto e é tão bom estar na presença dele. Queria que ele ainda morasse aqui pra gente tomar mais café, embora a gente curtisse mais tomar uma cerveja na casa dele, nas quintas-feiras, com a mãe dele dizendo que era o nosso rivotril.

Hoje pratico uma alimentação ayurvédica e descobri que meu sono pesado na manhã e à tarde têm a ver com meu tipo físico. Pra equilibrar meu corpo, preciso dormir cedo, e não consigo com essa droga. Decidi usá-la só nos fins de semana, nos quais tudo bem acordar um pouco mais tarde ou ficar mais sonolenta. Em tempos de quarentena, uma das minhas pequenas alegrias da vida adulta é esperar o fim de semana pra tomar minha droga favorita. E juro, a sensação do líquido quente inundando a língua já me trás um sentimento eufórico, com um quê de alegria, por mais que o dia seja ruim.

Tomo café sem açúcar e gosto de tomar em casa porque nunca sei se o café dos outros vai ser do meu gosto: forte, mas não queimado. O único lugar em que abro exceção é na casa do meu vó ou do meu tio. São cafés doces, e isso às vezes me deixa com um leve enjoo, mas o café pode nos dar dois tipos de prazer. O primeiro tem a ver com o sabor e a substância. Ah, como é bom sentir aquela energia a mais num café forte, sem açúcar e com canela, às vezes com leite de soja e cacau em pó também! Mas ah, não importa tanto o sabor. O outro prazer é tão importante quanto esse: a conversa com um cafezinho, às vezes o único item que não posso recusar em uma mesa mineira e carnista, cheia de laticínios aos quais abdiquei.

Todos os dias de manhã, acordo introspectiva e calada. Meus pais sempre acordam alegres, bem dispostos e tomam café conversando sem parar. Eu pareço amarga como o café puro, porque não quero muita conversa pela manhã. Mas no fundo, o que eu mais desejo pro meu futuro, mesmo sem saber se vou conseguir lidar com o peso disso, é alguém pra acordar e tomar um café quentinho junto, rindo e conversando. Sendo mais realista, pois me conheço, o mais provável é que essa pessoa só vai estar na minha frente algumas manhãs, naquele silêncio confortável que não existe entre os meus pais, mas pode existir entre eu e quem quer que divida um lar comigo. Eu quero conversar como eles, mas o diálogo pode ficar nos olhos, enquanto a boca se ocupa de apreciar esse que hoje é um dos meus sabores favoritos.

Até encontrar esse amor caseiro que domestique minha solidão, aprecio o cafezim enquanto estou com outras pessoas que amo e com as memórias que eu tenho. Café quente tem sabor de coração quente.




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