Escritas: Existiria arte num mundo não capitalista?

Eu acredito muito na máxima de que "A arte deve confortar o perturbado e perturbar o confortável" e eu me pauto muito nessa frase do Banksy pra entender porque e pra quem eu escrevo. É claro que existem outras definições sobre o que é arte e porque ela deve existir. Eu também escrevo para, pessoalmente, ser amada e imortalizada, por exemplo. Ambições ousadas que me permito ter e tentar saciar através do aprimoramento da minha escrita, eu sei. E mesmo tendo esses motivos pessoais, eu estou o tempo todo consciente de que aquilo que produzo na escrita não é para mim, exclusivamente.

Existe outra pessoa, do outro lado do que eu escrevo, lendo as palavras que ponho pra fora da minha cabeça. Compreender isso é o que ajuda a tornar o que escrevo cada vez mais relevante e gentil para os outros também. (Fica pra outro texto a explicação de como eu consigo ser melhor e mais generosa com a palavra escrita do que a com a palavra falada!)

O que produzo hoje será entregue a outro sujeito. Não se faz arte para guardá-la na gaveta. Ou até se faz, mas um dia a gente sabe que essa gaveta pode se abrir, e inclusive é por isso que muitas ideias ficam lá dentro, pelo medo do que pode acontecer quando elas inevitavelmente forem vistas. Para mim, parte desse medo que, às vezes, tranca meus textos nas gavetas tem a ver com o cuidado com o outro. Eu quero entregar esse conforto para os perturbados, não quero agitar mais! Por mais que eu saiba que ao confortar os perturbados, perturbo os confortáveis, a intenção principal não é essa. Eu realmente quero que minhas palavras sejam um abraço morno num dia frio ou o refresco de uma sombra sob o sol escaldante.

Mural de Banksy: Homem atirando flores

Oferecer conscientemente a arte como alívio é me doar um pouco ao mundo, compreendendo como ele tem sido para as pessoas.

A vida não é fácil, nem quando ela está mais próxima do seu natural. Mas todas as dificuldades se agravam dentro do sistema social, político e econômico em que vivemos. O capitalismo nos põe contra nossa natureza: temos que nos esgotar para sobreviver, quando também é humano parar para contemplar a vida e nos poupar. Somos também ensinados a competir quando na verdade nossa espécie progrediu graças à cooperação. Nos fizeram crer na necessidade de nos encaixarmos em padrões físicos, emocionais, mentais, comportamentais para fazer parte desse grupo que deveria nos acolher mas na verdade ele nos faz crer que nossas diferenças são indesejáveis. Idealmente, deveríamos ser como somos e nos juntarmos apesar das características distintas, porque é a nossa pluralidade que nos fortalece. A maior parte dos nossos sofrimentos vem desse sistema.

Não que nas sociedades mais primitivas não houvesse dor, conflito ou resistências pelo caminho, mas se a gente buscar a origem das nossas angústias existenciais físicas e mentais, vamos descobrir como quase tudo vem da nossa organização capitalista. Que mesmo antes de ser consolidada como hoje é, já vinha construindo sua cadeia de opressões que hoje culminam na nossa sociedade misógina, racista, xenofóbica, elitista, LGBTfóbica, colonialista e preconceituosa e danosa de tantas outras formas cruéis e injustas. 

Não vejo como a arte verdadeira pode servir a esse sistema. Pelo contrário, o papel dela fica cada vez mais claro diante desse cenário como parte dele sim, mas como também um contraponto. Afinal, para quem consegue perceber, fica claro que é preciso usar todas as formas possíveis para contestar as coisas como estão. Às vezes de forma mais aberta, às vezes em pequenas resistências mais sutis, busco sempre me posicionar em tudo que faço. Aqui, onde tenho um espaço para me manifestar, deixei na minha bio, à esquerda do design do blog a minha definição: sou ecossocialista. Isso significa que eu tenho como utopia que me guia uma outra sociedade, muito distinta da atual e, luto muito por ela. Sempre tento fazer com que vislumbres desse mundo melhor apareçam também nos meus textos. Talvez não tanto aqui porque aqui acabo falando muito de mim (mas se sou uma sujeita do mundo, logo o que penso e escrevo sobre mim é também sobre todo o universo do qual sou parte), mas principalmente na Newsletter e no que estou produzindo para mais tarde publicar. Minha literatura quer justiça!

Nessa sociedade com que sonho, há conforto para todos. Projetamos que a expressão artística seria entendida de outra maneira, como uma tradução genuína de si que não passaria pela necessidade e aprovação de um público consumidor, porque nessa sociedade ideal, sonhamos com a possibilidade de não ter nada tornado mercadoria, nem mesmo a arte, que acaba sendo vendida para a sobrevivência do artista. Poderíamos até discutir sobre como segregamos até mesmo a função da arte para apenas algumas pessoas quando na verdade, qualquer um, tendo o entendimento do que é arte poderia também produzi-la. Se não há perturbação (ou não tanto como hoje temos, já que a vida implica em movimento e movimento em conflito, embora nem todo conflito precise ser relativo à sobrevivência individual e pode passar apenas pela cooperação para uma vida melhor), não haverão pessoas precisando do conforto que a música, a dança, a pintura, a escultura, a literatura ou qualquer outra forma de expressão nos oferece, seja na sua própria produção ou ao ser apreciada.

Perdendo esse papel e se livrando da binariedade de confortar e perturbar, o que seria da arte? Ela só tem relevância dentro de um mundo perturbado? Ou estamos perdendo todo um universo de expressões que nos é negado porque a arte hoje é também meio de sobrevivência daqueles que não conseguem evitar serem artistas ou daqueles que precisam dela para sub-existência?

Sou do time de pessoas que crê que estamos deixando todo um universo de verdadeiras expressões da alma e de proposições para novos mundos justamente porque a arte em sua forma final não foi vista. Ela só existirá em toda sua grandiosidade quando nosso mundo nos permitir conforto.

Até lá, que ela seja grande dentro do nosso sistema, como o alívio da visão de terra confortavelmente firme e acolhedora, a ser alcançada enquanto navegamos no mar perturbado em que fomos deixados à deriva.

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