Ocitocina

Automática. De carne e osso, humanoide, inteligência artificial, mas automática. As leis da robótica de Asimov garantem que o robô esteja sempre servindo. Eu estou sempre servindo, ultimamente, ainda que eu seja considerada orgânica.

um boneco de lata com formas humanóides de pé num campo



Meu corpo humano tem dado e recebido alguns abraços enquanto serve à vida dos outros. Cuidar produz um bom efeito hormonal, despeja na carne mortal alguma química. E a ilusão ou vislumbre de uma vida com sentido além das maquinações sociais vem da química. Tenho cuidado dos outros e tenho cuidado de mim também, nunca me abandonando por completo. Terceira lei da robótica: um robô deve sempre proteger a própria existência. É um dom pouco valorizado, o de ser forte primeiro pra si, depois para e pelos outros. Mas só é um dom porque é consciente. Se não fosse, seria só mais uma forma de serventia. Como além da engenharia da vida eu escolhi seguir cuidando de mim enquanto sirvo ao meu propósito te cuidado, não desmorona. É isso que fortalece o esqueleto, mesmo que a carapaça pareça estar aos pedaços. Tenho cuidado, mas falta quem cuide de mim enquanto cuido. Eu não me abandono, eu não abandono ninguém, mas sinto que fui deixada pra trás. Quando me tornei um modelo obsoleto?

Não sei, me perdi na tarefa de cuidar e seguir cuidando.

Androides sonham com ovelhinhas elétricas? Quase todos os meus sonhos são com telas de computador ou de celulares e interfaces de aplicativos de redes sociais. São quase sempre pesadelos. E fora do mundo onírico, as notícias são ruins, pós-modernas. Quase sempre pesadelos também. O aqui e o agora estão terríveis e eu quero um retorno à pré-história, pré-pandêmica, pré-propriedade privada. Quero voltar a eras tribais, mas não é isso que as telas prevem para o futuro. No futuro, nada é orgânico, é tudo programado. Já estamos no futuro? Então, nesse futuro presente, de que se alimentam os robôs? Eu me alimento do sonho de me tornar outra vez humana.

Falta um abraço quente e longo que não tenha o peso de uma relação problemática, de uma hierarquia, de uma estrutura inteira se apoiando sobre meu corpo finito. Faz falta uma relação pouco complexa, superficial, em que a gente só goste da companhia da outra pessoa mesmo. Falta a simplicidade de um toque que façam palavras serem supérfluas. Poucas pessoas conseguem fazer esse tipo de conexão, essa química orgânica. E por falta de química, as sensações não têm sido humanas.

Falta um olhar nos olhos que sustente o peso do meu corpo tão alto que eu me sinta leve.  Falta o riso sem motivo, que não vai ser julgado e avaliado depois. Falta ouvir mais "eu te entendo" e faltam as horas falando sobre o que eu gosto, encontrando conexão pra pensar que eu pertenço a esse mundo, a esse lugar, a esse círculo, falta sentir que alguém sem a menor obrigação comigo me entende. Falta me sentir humana, menos máquina. A gente só se identifica como algo quando estamos em meio a iguais. E esse reconhecimento é químico. 

Pane no sistema: aonde está minha ocitocina?

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