Folha verde na rachadura do asfalto

Toda vida luta para, primeiro, ser; e depois que existir for certo, luta para ser autenticamente feliz. Ser quem se é, em sua plenitude, é que trás a sensação de felicidade, mesmo que não eterna.




No yoga e em algumas outras filosofias da ásia, diz-se que a vida é sim, constantemente, atravessada por sofrimento mas, ainda assim, o sentido dela é a felicidade. Todo ser vivo luta pra existir com as necessidades básicas garantidas e, depois, para buscar seu modo de existir que traga felicidade, de preferência sem ferir ou interferir na vida dos outros. O modo de existir autêntico é alinhado à nossa essência, que precisa se externalizar de alguma forma. Tudo que é vivo só quer isso: ser plenamente feliz.

Mas tantos ruídos interferem nessa busca. Por termos uma consciência constante da morte, nos apressamos para viver a vida, e daí surgem muitos dos impedimentos para a felicidade, que vão se tornando coletivos, sociais e impossíveis de se solucionar. E aí a gente se perde do nosso propósito de ser feliz na nossa autenticidade. Ou, a gente até deseja muito ser feliz, mas nunca consegue por causa das interferências ao nosso redor. Nesses casos, a gente só sobrevive, e não vive de verdade. Viver, para algumas filosofias, é ter de fato condições de buscar esta felicidade, mesmo com aqueles movimentos naturais e inevitáveis da vida que nos afastam de realizar tal desejo.

Porém, os movimentos não têm sido naturais. Tempos extremos, com grandes catástrofes - todas causadas pela humanidade - estão aqui e a gente se cansa, fica exausto, perde todas as forças para buscar brechas onde viver plenamente em busca dessa felicidade. Nos vemos cobertos de destroços, e precisamos ser a plantinha brotando no meio do asfalto. Mas de onde tirar forças?

Às vezes, diante de tudo que tem acontecido, questiono se os tempos estão mesmo tão horríveis ou se nós estamos é mais informados. Muitas coisas melhoraram para alguns, mesmo que não para todos; muitas coisas já não voltam às condições cruéis em que já existiram, pelo menos não na mesma escala. No entanto, seguimos sabendo de coisas terríveis todos os dias e, como uma pá de terra a mais sobre nosso peito, vamos sendo soterrados pouco a pouco por todas as coisas ruins das quais ficamos sabendo. Chega um tempo em que é impossível se mover. Mas, se a gente olhar para trás, houve tempos em que o peso da terra sobre o peito das pessoas era de chumbo, e elas sobreviveram. Concluo que tempos difíceis são inevitáveis, mas já estivemos muito pior.

Penso no desespero da gripe espanhola, quando não havia nem sequer a esperança de uma vacina - não que todos nós tenhamos sido vacinados - ainda há países sem a cobertura vacinal do Brasil e não foi por escolha; penso nas antigas guerras onde não haviam movimentos tão grandes contra elas, ainda que alguns por ignorância ou uma ambição egoísta e estúpida sigam a desejando. Penso nos tempos em que os processos que hoje destroem o nosso planeta eram vistos como progresso, e hoje, já sabemos o lado danoso deles, apesar de ainda termos majoritariamente a visão de que alguns desses mecanismos são indispensáveis (quando muitos são, não só dispensáveis mas também obsoletos se pensarmos num mundo não-capitalista - e não faltam propostas consistentes, justas e buscando se organizar para outras formas de sociedade e de sobrevivência por aí!).

Existe algum progresso, mas temos a ilusão de que não existe. É que o prazo para um fim do mundo  como conhecemos parece estar se aproximando. E não duvido que esteja. Só penso que, do mesmo modo como estamos mais perto de catástrofes terríveis, temos mais condições de evitá-las do que antes. Não que todos queiram isso ou estejam em condições ou com disposição para lutar por isto. É tão complexo lembrar que temos tanto poder mas não nos unimos para usá-lo. Sempre parece que estamos sós observando o mundo acabar, sabendo que dá pra fazer alguma coisa, mas que nem todo mundo se dispõe. Voltamos à sensação da minúscula sementinha entre os destroços do que já fomos. É sufocante.

Um olhar atento vê uma folha verde na rachadura do asfalto. Como é que a sementinha teve forças de germinar com a água suja que descia a enxurrada? Por que ela cria raízes ali no meio das pedras, quando só alguns grãozinhos de terra e areia fornecem alguns poucos nutrientes que ela precisa? Plantas não têm consciência. Não sabem - pelo menos não que a gente saiba - que aquela terra é pouca, que a água é suja, que o asfalto vai moldar o crescimento dos seus galhos. Elas simplesmente crescem ali e seguem vencendo na vida. Emicida disse que feijão germina no algodão/ a vida sempre vence. Vence mesmo, se a gente não se deixar levar pelo medo do futuro. Seguir existindo agora, na condição que for - em um algodão só com água, na rachadura do asfalto ou no meio dos escombros - é a maneira mais eficaz de se criar os futuros que deixamos de imaginar. Estar vivo é o primeiro passo para o caminho da felicidade, aquela plena e autêntica, que todo ser busca.

Nós, que temos consciência, podemos relembrar que resistência também é vida, e talvez isso nos motive a encontrar um pouco de alegria no simples fato de estarmos existindo. Uma vez ouvi um podcast sobre presas políticas do Brasil que insistiam em ter seus filhos mesmo na prisão, mesmo diante de uma ditadura que capturava imaginações de futuros melhores para as crianças que nasciam ali. Quando as questionavam se aquela era uma boa decisão, elas justificavam que o simples fato de estarem reproduzindo vida quando as queriam mortas era uma vitória contra tudo que as tentava eliminar; o simples fato de estarem vivas era afronta, ter filhos era tudo que não desejavam, e elas seguiam ousando. Às vezes viver é sobreviver agora até que dias melhores nos permitam de fato viver.

Na verdade, sem perceber, somos sobreviventes. Agora só é inevitável perceber como a vida é primeiro essa luta para existir e só depois para ser feliz. No momento, é preciso viver em brechas, buscando nelas um vislumbre de felicidade - sempre momentânea - que nos motive. A morte é mesmo a inimiga mais implacável que temos, e por ser tão ardilosa ela às vezes ela se infiltra até na vida, quando nos deixamos derrotar e nos contentamos com a sobrevivência; mas a vida sempre vence. Alguma vida, de alguma forma, vai restar, mas ela precisa ousar não morrer. Temos que amar a desobediência, a audácia de existir mesmo nas piores condições, por mais árduo que seja esse amor. Só de raiva. Só de teimosia. É esse desejo ambicioso de sobreviver que garante os futuros que não teremos sequer condições de imaginar para as vidas que virão. Por pior que o amanhã possa parecer, ainda é nele que iremos buscar nossa felicidade - nós ou nossos descendentes. Mas precisamos chegar lá, independente das condições de agora.

Não é fácil. É pesado carregar o peso do mundo, mas até Drummond o levou sobre seus ombros. Toda a terra sobre nós pode nutrir nosso crescimento, mesmo que ela queira apenas nos sufocar. A vida sempre foi instável, o movimento inconstante e às vezes cruel em que nos balançamos pode parecer insuperável. Mas ele também vai passar, ele já passou - outras vezes -, ele sempre passa. E nós sobrevivemos. No presente, para que haja um tempo futuro.

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