Primeira pessoa: Coisas feias, sujas, más e indesejáveis.

Em algum ponto de Sociedade do Cansaço, ByungChul Han explica que uma das grandes causas de adoecimento da nossa sociedade, em geral e individualmente é o excesso de positividade. Não existe entre nós muito espaço para que nossos defeitos existam e aquilo que achamos ruim, aquilo que é indesejável deve ser eliminado. A ideia de progresso constante, de evolução que o capitalismo nos faz acreditar que é linear, os traços dos ideais cristãos que permanecem na nossa concepção de mundo: tudo isso nos força a ignorar ou destruir nossas falhas. É o excesso de positividade.



No nosso mundo não parece existir espaço para o negativo e isso nos impede de desenvolvermos a nossa imunidade, ou seja, não conseguimos lidar com o lado ruim das coisas e perdemos nossa capacidade de nos protegermos.Também não nos damos conta de que estar imune ao que é ruim requer que a gente, primeiro, olhe para aquela coisa ruim. Depois que olhamos pra ela, a recebemos o mais amigavelmente que for possível, aí podemos saber se ela pode ficar ali pra nos ajudar a combater o excesso dela ou então. Muitas vezes, só a partir da presença dessa negatividade é que aprendemos a combatê-la. Esse é, grosso modo, o mecanismo da imunidade física mesmo. Muitas vezes a gente só combate uma doença porque recebemos um pouquinho dela, algumas células que nos ensinam a reconhecê-la e combater futuros ataques. E isso pode vir através de uma vacina ou uma versão leve da doença. (Bem, acho que quem não está entendendo minimamente sobre vacinas em 2021 ou tá errado ou não tá informado, então vou deixar só essa explicação aí, sem elaborar muito mais)

Bem, o excesso de positividade com que fui criada me faz reconhecer só agora alguns defeitos e sentimentos que eu não sabia que tinha, já que fui forçada a achar que tinha que rejeitá-los. Eu sequer olhava pra eles, então ao invés de entendê-los para aprender desde cedo o que fazer com eles, me encontro agora com a consciência de que eles existem mas não sei o que fazer. É como se eles já tivesse me adoecido, mas agora a doença já estivesse em uma fase muito avançada. Não me preparei pra resistir a esses ataques já que não tive contato anterior que me ensinasse a combater esse tipo de sentimento. Agora tenho nenhuma ou quase nenhuma habilidade pra lidar com essas coisas ruins.

É obvio que tenho tempo, ou assim espero. Ainda tenho 30 anos e até onde viver no Brasil permite a uma cidadã de classe média certo conforto e tempo de vida, terei tempo suficiente pra aprender a lidar com o que quer que apareça na minha vida, é claro. Mas ainda assim, pesa saber que não é possível reverter o tempo. Essa especulação que venho fazer, esse "o que seria de mim se eu soubesse disso antes" não muda muito da minha trajetória, mas eu me pego imaginando que eu seria melhor pros outros e pra mim se tivesse aprendido mais cedo as coisas que realmente sou, mesmo que elas sejam feias, sujas e más. Eu já teria entendido, agora que não é problema ter tantas coisas feias, sujas e más dentro de mim, porque todo mundo tem e faz pare de ser humano. Ninguém é composto apenas de coisas boas. Mas o excesso de positividade nos faz buscar essa imagem acética e higienizada do que é humano. Sim, somos muitas coisas boas (se tem uma pessoa que acredita que a humanidade é essencialmente boa, sou eu!) mas também temos coisas consideradas ruins como parte constituinte de nós. E, como um ser completo, não sabemos quais desses defeitos sustentam o edifício inteiro, como diria Clarice Lispector. Qualquer avaliação de quem somos necessita de tempo para que seja um pouco mais precisa e ainda assim, seria mais fácil se aceitássemos que temos múltiplas faces. Penso que o que fazemos com o que somos é de fato o que nos define no geral. Mas não tenho embasamento filosófico pra discutir esse aspecto em particular, então queria falar sobre duas coisas que têm me incomodado mais, entre essas descobertas.

Entre as coisas que aprendi que me pertencem, e, que evitei admitir por muito tempo, estão a inveja e o ciúme. Sentimentos irmãos, sobre os quais fui muito advertida. Ciúme é mau. Ciúme não é saudável. Ciúme é posse. Ciúme é coisa de gente insegura. Inveja é incompetência. Inveja é comparação. Não se compare com os outros. Inveja é ruim. Mas nem sempre é assim, é? Não é que agora eu esteja bem em sentir ciúme e inveja. Eu só sei que não consigo evitá-los e que nem sempre a origem deles são essas reduções tão básicas e simples que cansei de ouvir e que me fizeram rejeitá-los de forma ainda mais brusca. Eu não queria admitir que haviam sentimentos assim em mim, porque achava que eram culpa minha. Eu não queria aceitar que eu era culpada por eles também. Mas nem sempre o que a gente sente é escolha. E me incomoda profundamente ouvir pessoas dizendo o que devemos fazer ou como devemos agir em relação ao que sentimos. O sentir é inevitável, afinal! Temos certo controle sobre o quanto alimentamos os sentimentos e as emoções e é possível que consigamos agir a despeito das influências do que sentimos, e nem sempre esse controle está em nossas mãos. Mas sentir? Sentir não, sentir é totalmente fora do nosso controle. Eu não escolho me comparar com alguém para sentir inveja. Quando eu percebo, já estou sentindo, o processo não é racional. Também não escolho o sentimento quente de traição dentro do meu peito quando vejo uma pessoa que amo dando atenção a outra, por mais que eu seja consciente de que isso é uma bobagem.

Outro incômodo bastante específico está entre as coisas aparentemente não tão ruins, mas que vêm me consumindo. A necessidade de ser amada, o desejo de estar em um relacionamento e - o mais surpreendente -  o desejo de ser mãe também estão na minha cabeça constantemente e também não sei lidar com eles. Só que o que há em comum nesse segundo grupo é que eu mesma é que havia determinado, em tempos em que minha mentalidade era outra, que isso tudo seria ruim para mim e me impediria de ser quem eu desejava ser. Só que, ao longo dos últimos anos da minha idade adulta eu atingi uma consciência que intrinsecamente já estava em mim: sucesso na carreira não substitui uma boa vida afetiva. Eu não preciso nem deveria ter escolhido entre vida social e afetiva ou uma carreira. E essas escolhas que tomei tem a ver com o capitalismo, óbvio. Existe algum problema que não tenha origem aí?

O capitalismo nos desumaniza e nos transforma em máquinas substituíveis para servir ao capital. E isso acontece em processos que desvalorizam o que existe de mais humano em nós: a união, a afetividade, a cooperação. E é claro que quando a gente, vivendo sob a mentalidade capitalista, se vê diante da escolha entre carreira e uma vida afetiva saudável, a gente escolhe o que acha que é essencial pra nossa sobrevivência: dinheiro. Só que dinheiro nunca foi essencial. Dinheiro é invenção de um sistema que favorece a poucos que querem nos dominar. Existem outras coisas de fato indispensáveis pra nosso bem-viver: comida, segurança, proteção contra doenças, o frio e outros fatores externos naturais, convivência social, colaboração e afeto. Sim, afeto é essencial e indispensável. Evoluímos para que nosso corpo e nossa mente funcionem da melhor maneira possível quando  recebemos as descargas hormonais que vêm das nossas relações de amizade, das nossas interações sociais, sexuais e românticas. E eu perdi tempo crendo e agindo como se isso não fosse importante pra mim.

Hoje, tendo repensado o que considero relevante em minha vida, me encontro em outro caminho, querendo coisas que achei que não precisava e ainda não construí várias das habilidades que precisaria ter para conquistá-las e talvez seja tarde demais para desenvolvê-las a tempo, pelo menos vivendo no Brasil pandêmico. Se tudo der certo, eu tenho tempo, mas a sensação de que não tenho é cada vez mais massacrante.

No fim, quem tinha razão era Renato Russo: é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã. Diante de um amanhã cada vez menos certo (ao menos mentalmente é cada vez menos crível que teremos um futuro estável e com o que de mais básico é necessário para nossa vida), eu ainda tenho que lidar com meus desejos reprimidos por tanto tempo de ser uma pessoa amada, amar e gerar ou cuidar de uma prole que eu nem sei se vou conseguir mesmo me relacionar ou construir novas formas de amar de um jeito que me receba porque eu já sei o quanto eu não estou disposta a me encaixar nos padrões de relacionamento que já existem por aí. E pra piorar, não sei nem se vou destruir as relações que me permitirão saciar essas necessidades com o meu ciúme e a minha inveja, com os quais ainda preciso aprender a lidar. Mas o que o vocalista do Legião Urbana não disse claramente, embora com certeza eu acredite que isso esteja em algum lugar da letra de Pais e Filhos, é que: não é porque temos coisas ruins em nós que não podemos amar ou ser amados como somos. 

Eu espero que ele também esteja certo em dizer que não foi tempo perdido.

Comentários

Postagens mais visitadas