Mãos e boca
Cada parte tem suas funções: Minhas mãos escrevem, minha boca fala. E quando deveria se abrir, minha boca às vezes se cala.
Minhas mãos nunca se fecharam pra um soco. Não sei bater. Quando precisei, não consegui sequer empurrar para algo ruim a pessoa a quem desejei mal. Meus dedos não puxam gatilhos, não seguram pedras pra atirá-las contra outros pecadores. Minha mão, direita, é cheia de amor.
Minhas mãos acariciam, seguram, protegem, se entrelaçam, amparam, afagam. Minhas mãos escrevem.
Minha boca cospe, xinga, grita, morde, suga, fere e interfere. Escolhe as piores palavras, deliberadamente. Minha boca não mente, mas deveria poupar outros ouvidos das verdades que ninguém diz. Se ninguém diz, deve ter um motivo, que eu não sei se um dia vou entender. E quem sou eu pra falar a verdade que ninguém quer ouvir? Será que tenho esse direito? Meus dentes, serrados, mordem e assopram quando já arde demais a ferida dos outros. Os meus lábios beijam, mas nunca como num desfecho de novela, nunca com amor. Apaixonado, sim: doente, transmitindo a febre que eu carrego. Meu beijo é maldição e a mais amaldiçoada pelo toque dos lábios, pelo abrir da boca, pelo trepidar da língua, sempre sou eu, com minha boca maldita.
Meu veneno, ácido semântico: a boca fala, cala e nem se abala diante das paisagens que as minhas palavras fazem tremer, em terremotos de grande escala.
E o universo nesse equilíbrio estranho e improvável entre a boca do inferno e minhas mãos de amor fati, em mudras como as das deusas. Mãos estendidas, pra quem quiser segurar.
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