Pertencer através da narrativa

Reflexões sobre fanfics, comédias românticas e também uma resenha de "21h30 em Paris"

No começo do ano, participei do podcast Mulheres que Escrevem, à convite da escritora Seane Mello. Falamos sobre fanfics, narrativas criadas por fãs inspiradas em obras culturais ou fatos da realidade. O diálogo gravado, que você pode acessar aqui me fez consolidar uma percepção: a maioria das tramas é criação ou recriação de relacionamentos entre personagens e, como apontou a própria Seane numa série de posts do seu instagram, muitas vezes essas histórias são respostas eróticas a algo que ficou sem resolução no que inspirou essas histórias.

Nessa conversa, Seane também comentou que chegou a um ponto de ler fanfics e se acostumar ao gênero a tal ponto que leu, durante um determinado período, menos livros físicos do que desejava ter feito. Então, como tentativa de retomar suas leituras na literatura mais comum, ela pediu a uma amiga indicações de livros que tivessem “cara de fanfic”. Perguntei qual seria a definição de livros que tem cara de fanfic e a resposta foi algo parecido com “livros que não são muito pesados”.

As narrativas criadas por fãs têm muitos sub-gêneros, - todos os que a literatura canonizada e formal possuí e mais alguns nichos muito específicos, que também chegamos a mencionar em nossa conversa - mas acho que entendo a ideia. O peso ausente é justamente o de precisar passar pela autorização da indústria ou mediações que aprovem ou regulem algo em seu conteúdo ou forma. A maioria das fanfics não tem grandes aspirações de grandeza: ninguém que escreve fanfic tem como intenção principal criar inovações na linguagem ou formato da trama. É uma escrita mais livre, que serve mais à própria pessoa que escreve e não necessariamente a uma demanda ou padrão mercadológica, já que será publicada gratuitamente. Não que não ocorram inovações ou que, por não haver exigências de uma editora ou de um público pagante, as obras não tenham qualidade, algumas das prosas poéticas mais tocantes que já li eram fanfics, algumas tramas merecem ser lidas por muitas pessoas.

O que Seane quis dizer, provavelmente, tem a ver com uma percepção minha sobre o desejo de escrever fanfics. Muitas vezes esses autores só querem ver seus pontos de vista sobre uma narrativa já existente validado. Se eu acho que um personagem não deveria morrer, escrevo uma outra vida pra ele. Se penso que a protagonista tinha mais química romântica e sexual com sua melhor amiga do que com o homem com quem se casa no final da série, escrevo um romance para elas. Se eu acho que a dinâmica de uma amizade é tão boa que sustentaria bem outros gêneros, escrevo uma comédia sobre uma dupla de detetives de suspense. E, como é comum que estas histórias não sejam apenas sobre obras ficcionais, se eu acho que eu seria melhor amiga ou uma boa namorada para os integrantes do meu grupo favorito, me autoficciono e crio a nossa história.

Observo também que as pessoas que escrevem querem se identificar com as histórias já conhecidas, ficcionalizar suas impressões sobre o que foi dado, inserir sua própria vivência em uma trama já existente ou com personagens pré-concebidos. Torná-las parte de um cânone pré-existente é também o que faz com que as pessoas queiram ler essas histórias. Se identificar nem sempre é se colocar precisamente numa história e pode ser mais uma questão de ver algo de si em um personagem. Talvez seja nesse sentido também que as fanfics sejam, em sua maioria, leves: a maioria é sobre relacionamentos (nem sempre amorosos/românticos), mas você pode procurar exatamente a etiqueta da história que quer ler e, de acordo com essas “tags” você se encontra ali, como parte da trama também. É leve e gostoso encontrar meus personagens héteros favoritos em um relacionamento não-heterossexual porque eu não sou heterossexual; é divertido ler meu cantor favorito se apaixonando por uma fã porque eu também sou uma fã. 

Nos vai-e-vens da vida literária digital, acabei conhecendo Eileen L., persona-autora com quem acabei encontrando várias coisas em comum. Entre elas, o apreço pela leitura e escrita de fanfics. Acontece que nós não escrevemos sobre os mesmos fandons, então quando ela começou a publicar sua história, me propus a ler também para provar a mim mesma algo que sempre defendo: que fanfics são histórias autossuficientes, mesmo que se inspirem em algo ou alguém que já exista. Aliás, qual produto cultural não é também inspirado em algo ou alguém que já exista?

capa da fanfic "21h30 em paris" na qual há a ilustração de uma mulher branca de cabelos longos lisos e escuros usando saia e  botas pretas e camisa de manga comprida branca. atrás dela, um homem de terno cinza e camisa e calça pretos. eles estão na calçada em frente a vitrines de livrarias e seus rostos não são nítidos. no canto direito está escrito o título da história (21h30 em paris) e o nome da autora (Eileen L)

21h30 em Paris é uma comédia romântica onde o inusitado acontece: Ísis é uma historiadora dedicada a seu intercâmbio e se vê coincidentemente envolvida em um trabalho de pesquisa e tradução com um artista que admira. Não bastando trabalhar com o ator, ela ainda se torna interesse romântico de uma outra celebridade e acaba caindo de paraquedas numa trama também sobre a fama, mas principalmente sobre como às vezes o coração quer algo que nem sempre a nossa mente percebe que quer. No triângulo amoroso, Ísis se divide entre o que sente por Darren e a atenção que recebe de Mike, e precisa entender o que quer de cada um de seus pretendentes famosos. A inspirações para os personagens são atores da vida real, e Ísis - uma personagem original complexa e bem construída - é uma representação da fã que nunca ousou sonhar com seus ídolos mas acaba vivendo um sonho com situações cômicas, divertidas e um tanto quanto... românticas. Como em toda comédia romântica, 21h30 em Paris é gostosa de ler, e nos faz sentir o terrível drama da protagonista de escolher entre dois homens lindos, gentis e apaixonados (coitadinha!).

A própria comédia romântica, por mais que sirva a uma instituição que tem seus problemas (o romance heterossexual), é um gênero de fantasia: leitores ou espectadores são convidades a elaborar sobre as utopias amorosas que esperam alcançar na realidade. Não é pra ser realista, afinal, não é fácil achar dois homens famosos, bonitos, gentis, divertidos e inteligentes no meio de uma viagem a estudos. A ideia é, na realidade, fazer com que a gente sonhe com relacionamentos com pessoas assim. Ou pelo menos, pensar como seria se estivéssemos naquela situação: Ísis acabou se atraindo de verdade só por um deles, mas e você?Ficaria com os dois e depois escolheria um pra ser seu par definitivo? Tentaria convencer os dois a ficar com um deles nos dias de semana e com o outro nos fins de semana? (Essa seria minha opção escolhida!) Como você lidaria com a situação? Todo mundo que consome, sabe que a realidade é bem diferente dessas histórias, mas ainda assim, são elas que alimentam nossas expectativas. 

Tanto comédias românticas quanto fanfics são gêneros tradicionalmente conhecidos por serem feitos majoritariamente por e principalmente para mulheres, e obviamente são considerados produtos culturais inferiores, com a desculpa de que não tratam sobre nada importante. Relações são importantes, e estão presentes em todas as histórias de todos os gêneros. Relações humanas também estão presentes em qualquer outro gênero. Harry Potter não destrói as horcruxes sem seus melhores amigos, Frodo só vence o poder do Anel porque tem ao seu lado Sam, Batman só tem uma vida dupla como playboy milionário e vingador mascarado porque tem um mordomo que faz a vez de família e muitos filmes de ação dos anos 90 com muitas explosões e vinganças catárticas começam porque a esposa do protagonista morreu. Então porque só aquelas que falam em primeiro plano sobre relacionamentos é que são consideradas monótonas e insuficientemente literárias?

Quando a pessoa que escreve o livro ou o roteiro cria uma história vai se inserir ali direta ou indiretamente e tem a chance de elaborar sobre suas visões sobre o mundo e os relacionamentos humanos (toda arte é um pouco ou muito sobre as relações humanas). Quando alguém toma autoria da narrativa, fala sobre si e não se deixa ser representado pelo olhar do outro. Mulheres, lgbts+, pessoas racializadas sempre estiveram presentes nas tramas, mas raramente com a possibilidade de criar ou ser o centro das histórias. No cinema e na literatura, a comédia romântica é um dos poucos espaços onde há um pouco mais de autonomia verdadeira para essa criação que não é de autoria de um homem cis hétero branco. É preciso lembrar que a maioria dos títulos é sobre mulheres cis, brancas e em uma relação heterossexual, e geralmente os padrões relacionais são estadunidenses ou europeus, nos casos em que a obra é massivamente comercializada. Essa criação, no entanto, não recebe o mesmo status que os filmes e livros sobre e para homens cis hétero brancos, criados também por eles.

Quando uma pessoa fora do padrão aceito escreve e quer ler e ver histórias onde coisas boas acontecem a pessoas como elas, isso é insuficiente para ser considerado literatura ou um bom gênero audiovisual. Quando as relações das histórias fazem uma mulher feliz, no caso, o cânone considera aquela trama menor e fraca. E isso, penso eu, é um projeto para desqualificar os sonhos que ousamos ter e impedir que mais de nós se contaminem e sonhem com relacionamentos saudáveis e felizes. Nas comédias românticas, fantasiamos a perfeição. Nas fanfics, existe menos controle ainda dessa projeção saudável daquilo que é esperado dos relacionamentos. Nas fanfics de comédia românticas, podemos ousar imaginar dilemas leves.

Ousemos ser autores de nossos próprios sonhos e desejos, ainda que digam que isso é bobo, fraco e insignificante. Duvido muito que Ísis esteja sentindo que sua história é boba, fraca e insignificante quando estiver vivendo seu final feliz nos braços do ator com quem fica no final! (Não vou revelar quem, mas revelo aqui que eu torcia pelo trisal e acho que não custa NADA uma continuação onde um trisalsinho seja possível!)

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