Primeira pessoa: rebanho de cordeiros
Não sou de reler livros - até os que eu amo são raramente inteiramente visitados, acabam virando páginas de consulta esporádica. Por um acaso, encontrei "Além do bem e do mal" num sebo e decidi levar pra casa, porque foi uma das poucas leituras que fiz na vida que me despertavam esse “preciso ler de novo”.
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Arquivo pessoal |
A razão pro desejo de releitura tem a ver com o que este livro transformou na Anna Carolina de 18 anos, que se deparou com um filósofo alemão difícil de ler (talvez fosse a tradução disponível quatorze anos atrás!) na lista para o vestibular que queria prestar.
O vestibular nem era uma preocupação naquele último ano de ensino médio, já no ano anterior, só por teste, eu tinha tentado entrar no curso de Letras e fui aprovada. A escola, no entanto, ofereceu aulas extras pra que a gente pudesse decifrar melhor o tal do Nietzsche. Me inscrevi com muita boa vontade e desejo de refletir por novos pontos de vista. Já tínhamos aula de filosofia desde o ensino fundamental - uma das minhas favoritas - mas este era um filósofo que ficava fora da nossa grade.
Fizemos a leitura deste livro junto com o professor, um recém-espacializado no filósofo alemão que fez um bom trabalho em contextualizar e explicar tantos conceitos e ideias complexas pra adolescentes sem uma visão muito ampla do mundo. E isso permitiu que nossa mente se expandisse em direções improváveis - como deve ser, quando se trata de filosofia, ainda que essa seja só a minha opinião de amadora nada especializada em filosofia.
Por algum motivo, minha interpretação passou por caminhos que minha mente já não consegue refazer e eu fiquei muito marcada pela ideia de que se você se considera bom e faz coisas ruins você não é bom, e vice-versa. Além daquela lição, lembro de um debate no auditório vazio, preenchido com apenas alguns dos poucos inscritos naquela aula extra.
Na minha sala tinha um garoto vegetariano e ele pegou a metáfora dos lobos e cordeiros pra teorizar que se você era um lobo não hesitaria em matar um cordeiro mas se você cogita não comer o cordeiro você não é lobo. Não faço ideia se o garoto ainda é vegetariano ou por onde anda, talvez tenha sido a primeira pessoa que conheci que abdicava da carne. O que ele disse fazia muito sentido pra mim. Concluí, com aquele debate, que se humanos pensam que não devem comer carne, não são “comedores de carne naturais”.
Meu processo só se consolidou no ano seguinte, quando eu já estava cursando letras como queria. Eu estava feliz e tinha consciência de que era feliz com aquele pedacinho fácil de vida cheio de descobertas, novas liberdades, conhecimento, possibilidades e equilíbrio nas relações familiares.
Tudo ia bem, até que um dos meus gatos sumiu. Fiquei arrasada e percebi que amava ele tanto ou mais que muitos humanos, e como é que eu podia amar tanto alguns animais e comer outros? Eu não era um lobo, então? Quando por um verdadeiro milagre (que um dia conto aqui) o Suri foi reencontrado, olhei pros meus bichos: Suri e Téo, gatos que nos deixaram primeiro (desaparecido e por doença renal, respectivamente) e June e Lana, que morreram este ano, com um dia de intervalo entre uma e outra, deixando até hoje saudade demais. Eu não era um lobo. E queria assumir a fragilidade de ter apenas uma pele de cordeiro, como eram as daqueles quatro animais de quem eu cuidava com tanto amor. Eu não queria nunca mais colocar um pedaço de animal na minha boca.
Comuniquei à família, acho que minha mãe pensou que seria só uma fase, mas não implicou com aquilo, me apoiou e ela, que ainda era a responsável pela cozinha, sempre pensava em mim na hora de cozinhar. Meu pai até hoje se preocupa com as nossas proteínas e cai em todas as falácias de internet possíveis sobre alimentação. Alguns anos depois, minha irmã também se tornou vegetariana. Algumas pessoas que conheço dizem que se inspiram pelo meu empenho e discurso, mas não sei se alguém se manteve no projeto de não comer carne. Minha saúde sempre se manteve boa, muitas coisas melhoraram infinitamente depois que tirei a carne da alimentação, e mais ainda quando abandonei o leite e os ovos. Nunca achei difícil. Só é meio frustrante às vezes, e limitante. Nunca me arrependi. Nem por um dia sequer.
Treze anos depois, continuo vegetariana. Me afastei somente da carne por uns 9 ou 10 anos e hoje sou também vegana - busco não utilizar nenhum produto de origem animal, que explore animais ou que faça testes em animais, exceto quando muito necessário (tipo as vacinas!). Dá trabalho ter essa preocupação, mas não consigo fazer diferente. Hoje entendo essa escolha de vida como algo que vai muito além de uma alimentação baseada na compaixão com os animais. O veganismo anti-especista popular, que é o que eu sempre gostaria de divulgar, embora ainda não tenha encontrado os meios para fazer, é um comprometimento também com a vida humana, com a preservação do planeta e com o combate ao próprio capitalismo.
Na minha releitura de "Além do Bem e do Mal" não encontrei os trechos e entendimentos que motivaram a Anna Carolina jovem adulta a interpretar o texto daquela maneira. Talvez tenha sido uma memória inventada ou transformada a cada revisita, mas o livro segue sendo na minha mente o divisor de águas que me levou à escolha que mais define minha filosofia de vida, e que é base para muitas das minhas decisões de vida. Nietzsche é divertido de ler no começo, porque ele é bem direto e escrachado e critica abertamente tantas coisas, sem nenhum medo aparente de ser mal-recebido por isso. Mas tudo vai degringolando para pensamentos que hoje a gente compreende porque foram usados para justificar ideologias completamente opostas à minha.
Agora, se você deseja revolucionar sua alimentação e o mundo, recomendo outra leitura: "A política sexual da carne", de Carol J. Adams (Escrevi sobre este livro aqui no resumo sobre minhas leituras de 2020). Que inclusive, foi o que me inspirou a contar minha história de vegetarianismo. Ela explica na obra sobre como é preciso espalhar pelo mundo narrativas para além do "carnismo" visto como o único padrão possível de vida. Espero que inspire e motive alguém! Não existe futuro sem antiespecismo.
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