Primeira pessoa: Lagartixa na parede
Fazem mais ou menos dez anos que me formei em letras. Não uso mais o diploma profissionalmente, mas não me arrependo nem um dia sequer de ter feito o curso. A experiência de ter estudado em uma universidade federal, de fato, me abriu a universos nunca antes explorados, e grande parte do meu caráter se moldou com os aprendizados de dentro e fora da sala de aula que a vida universitária me proporcionou. Muito do que fazia parte da grade curricular já deve estar ultrapassado, já que se passou tanto tempo e as teorias devem ter se transformado de alguma forma. Ainda assim, definitivamente, muito conhecimento adquirido nas salas frias e corredores espaçosos ainda está de alguma forma entranhado em mim.
Entre as memórias não necessariamente acadêmicas está o constante repetir de alguns poemas que uma das professoras fazia. Chacal e Manoel de Barros eram os poetas mais conjurados no alto do morro, onde fica o Campus Dom Bosco da UFSJ. Nunca encontrei em livros os poemas que ela recitava de cor, por isso não sei se de fato a frase que Manoel de Barros escreveu é a que vou repetir agora: A solidão é uma lagartixa na parede. Não creio que ele se importaria com a frase inexata, porque a poesia dele parece compreender muito bem e deixar lugar também para as imprecisões da memória.
Não sei se o meu entendimento das palavras foi o mesmo na época, só sei que este é mais um dos poemas ou frases nunca lidos que sei de cor por causa do curso de letras. Aliás, foi lá também, que aprendi a origem da expressão "saber de cor". Já nem lembro se vem do latim ou grego, mas cor vem da palavra core, coração. Quando sabemos algo de cor, aquilo já está gravado em nossos batimentos cardíacos. É provável que, mesmo compreendendo o dito de forma diferente antes, ele ficou marcado em mim porque falava muito sobre mim.
De fato, sei de coração que nesta vida, eu sou uma lagartixa atravessando a parede imensa do mundo. Às vezes, me encontro com outras num muro de chapisco, quando estamos caçando insetos que voam ao redor da luz, mas na maior parte do tempo, estou caminhando por uma superfície lisa imensa e muito diferente do meu habitat natural. Caminho sozinha.
O tema da solidão é recorrente por aqui, vocês já sabem, e muitas vezes trago uma amizade amarga com o sentimento. Às vezes, estar só nem mesmo me é companhia, e só sinto aquela tristeza melancólica por não ter muitas pessoas ao redor ou por tê-las e não em conectar a elas. Talvez o que sinto ao estar só possa ser explicado com palavras em outra língua: Languishing ou longing, intraduzíveis em uma só palavra para o português.
No curso de letras, também tive uma disciplina de tradução com um dos professores mais admiráveis que conheci. Com ele, aprendi que não existe fidelidade a texto nenhum - e isso é ótimo e horrível ao mesmo tempo - e também entendi que há vocabulários sem nenhum correspondente em outra língua. Languishing seria algo como definhamento e longing seria um desejo saudoso, uma falta de algo. Ou assim eu entendo, porque sei que traduções são subjetivas e pessoais também. Estes sentimentos de outras línguas são derivados da solidão que com certeza a fazem tão temida.
Como já disse antes, sou amiga da solidão - ainda que, às vezes, amigos briguem, discordem, entrem em desavença e queiram se afastar. E o que eu tenho a compartilhar hoje é que, por mais que a parede seja grande, dá pra encontrar outras lagartixinhas por aí. Na verdade, é justamente o fato de existir uma superfície tão ampla a percorrer que faz os encontros sob as lâmpadas cercadas por mosquitos mais especiais.
Desde o começo de 2020 estou para me mudar. Muita coisa aconteceu nesse tempo e nem sei mais se sou a mesma. Hoje entendo que eu precisava ter estado lá onde estive, eu precisava continuar onde estava - ou assim eu entendo essa narrativa autobiográfica que venho traçando para mim. Agora, quando todo o universo se alinhou para que eu enfim conseguisse sair da casa dos meus pais, percebo que não estar cercada de pessoas me abastece e torna cada presença em minha vida especial. Os laços parecem renovados e fortalecidos. Eu só precisava de tempo sozinha para me sentir bem quando estava acompanhada. Sempre suspeitei isso, e agora tenho comprovação.
Não vou ousar comemorar um estado como se fosse permanente. Nada nessa vida é. Mas vou me agarrar a esses momentos de plenitude. De solidão em equilíbrio com a alegria dos encontros, de harmonia entre eu e os outros. Aprendi, nos poucos dias morando só uma lição que me lembra o que descobri ainda universitária, algo gravado em meu coração mas que precisava ser espanado para a mudança, para ser visto e lembrado:
Se a solidão é uma lagartixa na parede, a alegria é um encontro sob a luz com outros lagartos domésticos solitários.
Comentários
Postar um comentário