Amabilidade sem finalidade
Sempre digo que a inspiração me sopra coisas nos ouvidos e sou meramente médium, anotando todas as histórias que o mundo precisa ler e ouvir através de mim. Por isso, estou escrevendo uma longa história de amor a três. Eu poderia escrever algo simplesmente erótico ou um romance mais tradicional, até porque sentiria mais conforto criando uma história mais próxima de situações que já vivi. Mas é que a inspiração não me deixa em paz enquanto não escrevo o que ela dita.
Isso de não ter vivido o que estou escrevendo me atormenta um pouco, mas não são só romances a três que me fazem questionar se deveria estar escrevendo algo que nunca aconteceu comigo. Mas as vozes na minha cabeça sempre sopram justamente tramas em que não me envolvi, então sempre escrevo coisas românticas. Será que é uma tentativa inconsciente de experimentar o que não aconteceu comigo de fato?
Na vida real, sempre me sinto deficiente em vitamina r: sinto necessidade de romance, mas me relacionar é raro e difícil, então a hipótese que a literatura suplemente essa falta é bastante plausível. Mas consumir livros (e também filmes e séries) de romance e querer criar algo semelhante não é só um exercício de viver algo a que não tenho acesso na realidade: É também um exercício de compreensão de toda uma vida que vai muito mais além do romance, porque vários aspectos da vida se encontram nessa relação.
Pra mim, tem algo de fascinante no jeito como a gente é hormonal, química, física e mentalmente impelido a se relacionar - não só romanticamente. Esse desejo de alguma forma criarmos elos com os outros é estratégia de sobrevivência da espécie, e não necessariamente individual. E ainda assim, com quase todo mundo empenhado no mesmo propósito de conexão que ajude na sobrevivência, os laços ainda são difíceis de se dar. É claro que as complicações são majoritariamente relacionadas aos modos como a sociedade se desenvolveu. Criamos um jeito de viver em conjunto para sobreviver que, paradoxalmente, nos afasta do essencial para viver. Mas não viver qualquer vida, e sim uma vida de fato, que torne essa existência aleatória e dolorosa em algo com sentido.
Uma das coisas que me fascina nos relacionamentos românticos, já que falamos deles, é que a vontade de viver uma relação desse tipo é um impulso forte demais dentro de mim, mas ainda assim, nunca consigo de fato realizá-lo.
A minha dificuldade mora no fato de que relações envolvem... outras pessoas. Sim, o que mais quero é também o que me impede de ter o que quero. Ter que conversar, negociar, ceder, exigir, pedir, demandar, dar, colaborar, conviver... tudo isso é tão difícil! Imagina quando a relação envolve três pessoas? Eu sei que existem grupos de amizade ou mesmo a família que demandam uma colaboração coletiva e um acerto de todas as partes envolvidas, mas isso já é normalizado, certo? Então escrever essa história de amor com três envolvidos tentando o seu melhor pra ficar juntos me faz pensar em como um relacionamento desses - e qualquer outro, na verdade - só funciona se todos trabalharem conjuntamente pra isso.
Como eu disse, sou carente de vitamina R, e é na ficção que aprendo a lidar com o que me tem sido negado. Através das vivências de personagens, vou vislumbrando utopias pra me nortar, mas também experimento o que é possível dentro da realidade - já que nunca criei um universo fantástico com outras estruturas sociais e relacionais. É nesse ambiente imaginado que compreendo de forma limitada, eu sei, o que é preciso e indispensável pra que uma relação vá adiante. E nessa minha última experiência de escrita, tenho aprendido que não é preciso só querer estar junto, mas querer estar junto e que o outro seja feliz estando junto com você. É só com essas duas vontades bem nítidas como prioridade que se sabe a medida exata do que ceder e do que pedir - ou pelo menos foi assim que aprendi com meus dois rapazes e minha mocinha.
Meu trisal me ensinou sobre conversas chatas mas necessárias e também sobre cada um ceder um pouquinho para ser feliz. Se organizar direitinho, todo mundo não só transa, mas ama também. Mas a questão é que... eles estão dando significado à vida deles, e vivendo, de fato - ainda que na ficção - um amor a três.
Muitas vezes, nos relacionamentos mais simples, a gente só sobrevive. E na vida também. A gente fica só buscando uma sobrevida que não tem sentido, que não leva a nada, que nem tem razão pra existir. Acho que, como sociedade, fazemos isso coletivamente sem nem perceber, mas creio que individualmente é mais fácil perceber quando caímos nesse tipo de existência. Muitas vezes, a gente entra nesse modo de sobrevivência sem uma vida de fato porque temos questões psicológicas ou práticas que nos impedem de romper com aquilo que não é mais vida e como existimos dentro de um contexto, a sociedade influi nesse movimento. É difícil nadar contra a corrente.
Mas em muitos momentos a corrente está a nosso favor, mas acabamos aceitando o que não nos faz bem por pura preguiça de dar significado ao que estamos vivendo.
Não é fácil viver e dar sentido à existência. Tanta gente já escreveu, pensou e repetiu: não é fácil dar sentido, mas buscar um norte na vida é só o que faz ela ter sentido - por mais redundante que pareça. Se deixar levar pela preguiça de viver e se contentar só com a sobrevivência é tentador justamente porque não dói, é confortável. Mas não é viver, e a gente tem dentro de nós um impulso forte de vida.
O ímpeto de vida é uma força poderosa, oposta à apatia da morte, mas andando lado a lado com ela. Porque, afinal, só porque temos consciência da morte que temos essa necessidade de dar sentido à vida. A gente não quer ser como os animais chamados irracionais: inconscientes da morte, e por isso repetindo nossas tarefas de sobrevivência sem muita reflexão. Mas a gente esqueceu de cultivar essa não-animalidade porque pensamos que já estamos diferentes dos não-humanos. Mas, enquanto sociedade, só posso dizer que: estamos sim, animais. Isso não é elogio.
É claro que isso tem a ver com o capitalismo. É claro. Mas porque é que a gente, enquanto sociedade ou indivíduos, se conformou com esse estado de sobreviver e deixar a vida pra depois, sendo que não existe depois?
Mais uma vez, tenho encontrado respostas em mais uma leitura de Byung-Chul Han. Depois de concluir Capitalismo e impulso de morte, livro de ensaios do filósofo que contém também algumas entrevistas,me dei conta de que coletivamente é muito difícil sair dessa apatia. Em um dos ensaios, chamado "Por que hoje uma revolução não é possível", o sul-coreano naturalizado alemão explica como a nova fase do capitalismo nos esgota e nos tira as forças pra transformarmos o mundo. (Ideia explorada mais ampla e profundamente em Sociedade do Cansaço, do mesmo autor.)
Certo, certo. Talvez não seja possível mudar o mundo. (É um pouco doloroso constatar, mas não me faz desistir de pensar em soluções). Mas individualmente ou em pequenos grupos é possível dar significado às nossas vidas e sair da apatia do trabalhar para viver e viver para trabalhar. É claro que precisamos de força, paciência, de lutar contra um mar inteiro de imposições que nos são feitas por toda a vida, limitando cada aspecto nosso e isso, sim, nos cansa. Mas também é neste capítulo do livro que ByungChul Han explica que o comunismo como mercadoria é o fim da revolução. Quando fala sobre o comunismo como mercadoria, ele se refere à uberização do trabalho, que precariza as condições de trabalho, reduz salários com a desculpa de estar tornando algum tipo de serviço mais acessível. Mas há uma saída possível: A amabilidade sem finalidade. A colaboração pela colaboração.
Eu duvido que você considere isso totalmente impossível (depois que os seus direitos básicos estão garantidos!) ou um absurdo total. Nada mais é do que cooperar pra estar junto com o outro mas garantindo que o outro esteja feliz em estar com você. Algo que meu trisal ficcional está tentando e que eu também tento fazer na minha vida, - embora não no mesmo tipo de relação - algo que já está no nosso DNA como estímulo de sobrevivência. A cooperação faz parte de nós, e não estamos parando pra repensar novos mundos juntos, com espaço e justiça para todos. E é só numa vida conjunta justa que encontramos o nosso verdadeiro sentido de existir, não é? Talvez a revolução não seja possível, mas pode ser que a gente consiga aplicar a amabilidade sem finalidade nas nossas relações próximas, nos nossos grupos, nas nossas pequenas coletividades. Essa amabilidade, afinal, não é tão sem finalidade assim. É ela que forma e firma laços. Mas o que lembro aqui é que esquecemos de usar essa forma de afeto por ela mesma, sem esperar recompensas. É ela que nos faz nos aproximar dos outros e é só em comunidade, compartilhando do que nos torna humanos, é que conseguimos dar sentido à nossa jornada pela terra.
Eu ainda não sei elaborar respostas, nem levar para a prática algo que só existe no meu mundo imaginário de onde me vem a inspiração. Mas eu sei elaborar perguntas: Porque você não está encontrando meios de viver de verdade?
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