O gosto da esperança

A essa altura do capitalismo tardio só não sabe ou intui que a maioria dos males que nos afligem são frutos das estruturas da nossa sociedade quem está muito mal informado ou quem acha que se beneficia desse sistema e prefere acreditar que as coisas são assim mesmo. Tem também os que causam esses males de maneira plena ou parcialmente consciente: os que de fato lucram com a organização da sociedade como está e precisam que ela se mantenha assim, mesmo às custas da exploração física e mental dos outros.

É claro que todo o caos em que a gente vive - catástrofe climática, fome, desigualdade, violências de formas diversas, preconceitos - se agrava por causa do capitalismo. É óbvio. Ouvimos de nossos avós sobre como as coisas já foram ruins e ouvimos dos nossos pais um progresso gradual de melhorias - pelo menos pra média da população esse foi um processo comum. Crescemos em época de prosperidade e um pouco menos de desigualdade, e naquele tempo era possível ter esperança. Em poucos anos, o contexto mudou drasticamente agora é tudo tão claramente catastrófico, tudo tão pesado, que pensamos que existe um prédio inteiro desabado sobre nós. Acreditamos que não há saída de debaixo dos escombros e se houver, vamos sair pra quê? Pra viver nos entulhos, nos restos do que resta da humanidade? Será que as coisas são assim mesmo?

Tem sido muito difícil sentir a tal da esperança, porque parece que tudo que a gente faz é tão pequeno e tão insignificante diante de todo o cenário que precisa mudar pras coisas ficarem razoavelmente dignas. A sensação é que já conseguiram deter a primavera inteira, e fazer brotar uma flor só não é suficiente. Uma flor é só uma flor: não alimenta, não dá frutos suficiente pra alimentar nossa esperança. Mas uma só flor carrega a semente da esperança.

O ano de 2018 foi o ano mais desesperador da minha vida - até os acontecimentos recentes da pandemia. Não é preciso nem relembrar com palavras o cenário de divisão entre familiares, amigos e da sociedade como um todo: você que viveu essa época sabe bem o quanto era aterrador descobrir pessoas que estavam do lado de lá. Como é que alguém que você julgava conhecer e em quem confiava podia concordar com o projeto de futuro que o inominável presidente representava e defendia? Ficou evidente e urgente que a gente precisava fazer alguma coisa. O quê? Não sabíamos. A gente que é de uma classe média confortável passou pouco mais de uma década com tanto conforto e sensação de progresso contínuo, que a gente não aprendeu - ou desaprendeu - que é importante se unir e lutar por algo. Porque é isso que transforma as grandes coisas que precisam mudar: união e luta. E aí, quando a gente viu que essas mudanças na verdade não podiam esperar e nem eram coisa pro futuro - era tudo pra ontem - o desespero bateu.

No ano das eleições eu me desesperava mais a cada dia de absurdos televisionados, a cada pessoa próxima que anunciava um voto do lado contrário, a cada pesquisa que provava o delírio anticomunista desinformado e despolitizado de grande parte da população brasileira.

Em situações assim, algumas pessoas rezam. Eu ouço música.

No fim daqueles 365 dias, o spotify me mostrou que a música mais ouvida do meu ano de 2018 foi Change, música de RM e Wale. (Sim, pode marcar na cartelinha do bingo de coisas recorrentes nos meus textos: falar mal do capitalismo, falar bem do BTS, citar Kim Namjoon). Change tem uma letra realista, mas um refrão que invocou, evocou, convocou e provocou toda a esperança que ainda existia em mim. Antes de dormir, ouvir ela algumas vezes me dava forças, cessava meu choro e me devolvia um pouquinho mais dela: a esperança de que tanto estou falando por aqui.



RM, cujo nome real é Namjoon é um rapper que tem um histórico de letras conscientes que analisam e apontam o funcionamento da sociedade e como isso se desdobra nas relações humanas, tanto na sua carreira solo quanto no BTS - grupo cujas letras são, em grande maioria, assinadas por ele. Namjoon e Wale abordam duas realidades da Coréia e dos EUA - país de origem de Wale e, a canção de 2017 acabou se tornando ainda mais atual com o passar do tempo. Change também pode ser encarada como uma resposta à música com mesmo nome, de Daniel Merriweather, na qual Wale também participa. A diferença é que na versão de 2009, Daniel Merriweather e Wale trazem um refrão que repete que nada vai mudar, embora depois a gente descubra que a frase é uma condicional:

Ain't nothing gonna change/ If nobody's gonna wake up/ And start asking who's in charge.

(Nada vai mudar/ se ninguém acordar/ e começar a se perguntar quem é responsável)

 Change, a versão com RM tem uma outra abordagem: Quase 10 anos depois da primeira música com a participação com Wale, o que se repete no refrão já é bem diferente: The world is gonna change. (O mundo vai mudar).

A letra lista, na maior parte do tempo, coisas dolorosas do cotidiano. RM fala sobre o sistema escolar e como ele parece ter sido feito pra tolher crianças e adolescentes, tema já abordado em letras anteriores à sua estreia no BTS e mais tarde, no próprio grupo. Ele também fala sobre como a internet e as palavras com as quais escolhemos nos comunicar podem ser mais violentas e até mesmo mortais do que armas. Ele não tem certeza se ele é que é louco por ter esperanças ou se os loucos são os que não tem em mente este tipo de questionamento. Ao mesmo tempo em que se põe nesse lugar vulnerável de pedir pra que digam a ele que tudo vai ficar bem, que o certo não vai vencer o errado, que a escuridão nunca vai vencer a luz, o refrão é a afirmação que o próprio eu-lírico precisa ouvir: O mundo vai mudar.

Já Wale versa sobre a adoração que temos por dinheiro. Antes mesmo dos movimentos Black Lives Matter terem ganhado a proporção que ganharam, os versos falavam sobre a polícia racista dos EUA - não que isso seja novidade. Tupac, na quase homônima Changes, gravada em 1992, já abordava esse tema. Wale também fala sobre política, declarando-se como odiado pela extrema-direita e mencionando a falta de fé nos governantes que evidencia a necessidade de união. Em outra de suas faixas, Smile, Wale sugere como a positividade diante da situação social estadunidense era uma resistência em meio ao caos de um governo de direita no qual algumas populações são mais massacradas que outras. Então, quando o rapper nos fala sobre a sua esperança de mudança, ele fala sobre coisas urgentes já naquela época, em especial para ele que é negro, filho de imigrantes nigerianos. A urgência para o rapper é ainda maior porque ele tem uma filha. Quando ele menciona que vê progresso nos olhos de sua filha (então, recém nascida) será que esse progresso era uma necessidade ou uma possibilidade? O veemente "o mundo vai mudar" do refrão, é acompanhado de ações de Wale, mesmo que sejam papel e caneta ou a letra da própria música. E, em referência à Man in the Mirroro rap define uma de suas crenças: a mudança verdadeira começa no espelho. Ou seja, se a gente quer mudar o mundo, a gente tem, primeiro, que mudar a si mesmo.

Mesmo com um pé na realidade e nas dúvidas que um mundo tão cruel nos dá, Change reafirma que o mundo vai mudar. Talvez um detalhe que escape à ouvidos e olhos menos atentos é a pergunta que vem um pouco antes do refrão: If hope is a taste, what is yours?/ What you eat all day? (Se a esperança é um gosto, qual é o seu?/Do que você se alimenta o dia todo?). Taste, em inglês, carrega os mesmos sentidos da palavra gosto, da língua portuguesa: tanto serve para designar sabor, quanto uma preferência.

Se a esperança é um sabor, qual é o seu sabor? Se a esperança é uma preferência, qual é a sua preferência?

Também penso que a pergunta "do que você se alimenta o dia todo?" pode ser um lembrete de que a esperança é um alimento que nos sustenta mas também é, como um gosto, algo que se cultiva. Você pode não nascer gostando de determinado tipo de coisa, mas pode aprender a gostar: um gosto cultivado, alimentado com o tempo.

E essa é uma pergunta muito importante pra incluir em qualquer pensamento sobre mudanças, ainda mais quando a esperança de mudança é sobre mudar todo o mundo.

No livro A arte da Felicidade de Sua Santidade, o Dalai Lama e Howard C. Cutler, o líder espiritual Tibetano afirma

"Nossa existência diária é repleta de esperança, embora não haja nenhuma garantia quanto ao nosso futuro. Não há nenhuma garantia de que amanhã a esta hora estaremos aqui. Mesmo assim, trabalhamos para isso apenas com base na esperança."

A fala é o trecho de uma palestra em que o mestre sugere uma meditação sobre o propósito da vida, que, segundo ele, deve ser direcionada à busca da nossa felicidade - que inclui servir aos outros seres sencientes ou, no mínimo, não prejudicá-los. É importante e interessante também entender que a nossa felicidade deve incluir os outros, mas a ideia de que a esperança já é uma parte intrínseca do ser humano, pode completar a ideia presente em Change: ter esperança é parte da vida, mas alimentá-la faz com que ela se fortaleça.

Ultimamente, tenho percebido uma grande dificuldade nas pessoas em ter esperanças. A dúvida sempre fez parte da própria humanidade: Sou louco por ter esperanças? Namjoon questiona algo parecido na letra de Change: Tell me who's insane, baby? Is it me or them? (Me diz quem está insano, meu amor? Sou eu ou eles?) E também não é difícil dizer que a dúvida se torna ainda mais constante no mundo em que vivemos, em especial se você estiver localizado no espaço-tempo chamado Brasil de 2021. Esse dispositivo do capitalismo, de oprimir nosso otimismo por dias melhores, acaba nos impedindo de ver saídas e possibilidades de ação. As pessoas que se beneficiam com esse sistema ganham com o nosso medo e a nossa desesperança. Mas assim como as dúvidas em relação ao amanhã e às nossas próprias crenças de que as coisas podem ser melhores, a esperança é também intrínseca a nós, e é o que nos move para sobreviver! 

Honestamente, meu otimismo caiu drasticamente depois desses dois anos de pandemia, e no meu caso, as razões são até mais pessoais do que coletivas, mas é claro que o coletivo tem um peso enorme nessa diminuição. Creio que a maioria das pessoas vive uma vida online, se informa apenas das piores notícias e vê apenas coisas ruins. E sim, tá tudo ruim. Muito ruim. Sentir todas essas coisas nos atrapalha a enxergar uma realidade que querem esconder da gente: somos bons e somos muitos. Estamos perdidos uns dos outros, estamos distantes de uma organização transformadora, mas somos a maioria e queremos transformação. Disso eu tenho certeza!

Como a gente já sabe, manter a população totalmente pessimista é um projeto. Mas podemos usar o pessimismo da razão - que nos faz ver como as coisas estão de verdade complicadas, pra usar um eufemismo gentil - e aliá-lo ao otimismo da vontade. Muitas falas que tenho percebido ultimamente são de total entrega. Tenho percebido como isso é reflexo de uma atitude de mera resistência. Diante da pandemia, diante do governo, diante de tudo que acontece com o mundo, nossa postura é de resistir. De aguentar, de apenas sobreviver. Falta em nós aquele fogo nos olhos de lutar para viver, pra existir, pra mudarmos as coisas e criarmos o nosso mundo, que a gente merece, precisa e quer.

É difícil, eu sei como é difícil. Mas o otimismo da vontade transforma efetivamente porque é justamente a vontade e a mobilização pela mudança que vai criando espaços, ferramentas e meios para mudanças maiores, mais efetivas, mais concretas, mais definitivas e duradouras. E depois disso, a gente ainda precisa manter o pessimismo da razão: crer que podemos voltar ao estado anterior pode nos incentivar a lutar para sempre ficarmos atentos e fortes e conservar a esperança por dias ainda melhores. Nós crescemos em uma época mais próspera, mas esquecemos de fortalecer a nossa união e a nossa capacidade de fazer transformações ainda maiores justamente por termos deixado de lado o pessimismo da razão e termos adotado outro otimismo que não o da vontade. Pequenas ações em direção ao que temos ambição são uma forma de cultivar nossa esperança, um gosto que precisamos alimentar diariamente. Porque a esperança é um gosto, não é?

Essa atitude de entrega é o total pessimismo, e tenho ouvido muito "vou fazer tal coisa pra quê, se o mundo vai acabar?". A gente faz pra alimentar a esperança de que as coisas não vão ser assim no futuro, mas a gente faz pelo presente também. Por uma vida melhor pra nós também, pelo direito à busca da nossa própria felicidade. Pra alguns é mais fácil, pra outros é mais difícil. Mas na medida das suas possibilidades, alimente agora a sua esperança com o que você acredita. Isso faz crescer ainda mais o horizonte de transformações. E lembre-se: sua felicidade depende das outras pessoas e não pode atrapalhar a felicidade deles. As saídas são coletivas! De quem você está escolhendo se cercar pra ficar mais forte? Quem você está ajudando a ter mais esperanças?

Não acredito em uma prática para o futuro apenas. Acredito em estar em pequenas amostras do futuro que a gente quer. Então, se você quer um mundo com integração entre a humanidade e a natureza (na verdade, nem somos diferentes pra nos integrar), escolha se envolver em algum projeto relacionado a isso. Se você quer um mundo mais justo, faça o que puder fazer pela justiça e a igualdade. Se você acredita que a mudança é nas relações, relacione-se de forma diferente com as pessoas. E - nunca é demais dizer - alimente as esperanças das outras pessoas, traga mais pessoas. A maneira como você vai fazer isso, depende do que está ao seu redor. John Lennon recomendava que a gente devia pensar global e agir localmente. Mas não deixe de alimentar a sua esperança!

Uma semente já germina a esperança, e ela pode se espalhar pelos campos onde cair. E como diria Tupac, em 1992,  já está na hora de fazermos algumas mudanças: no jeito em que a gente come, vive e trata os outros.

O que você está fazendo pra cultivar o gosto pela esperança?

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