Por que sofremos?

Ser criada num universo católico, cristão e espírita me fez ouvir muitas vezes que Deus é bom, que ele é perfeito e que nós, à sua imagem e semelhança, somos também, ou ao menos deveríamos tentar ser.

Mas se o mundo, criação dele, é perfeito, por que razão existem tantas falhas nele? Eu entendo a natureza imperfeita das coisas, desde que a explicação não seja uma criatura que nos criou. Se o mundo como é, é obra do acaso, nada mais somos que a diferentes combinações de poeira das estrelas se experimentando em outras formas. 

O fato é que não somos perfeitos moralmente, mas sequer temos o privilégio de um corpo perfeito. Tenho me deparado com a doença me cercando. Não a mim exatamente, embora eu também tenha um vírus circulando no meu corpo com o qual ainda não sei lidar porque estamos em pandemia e eu sequer tive a chance de entender como lidar com esse corpo estranho tomando posse do meu, pois estou tentando lidar com algo muito mais transmissível e rápida e imediatamente letal. Me dei conta de que, a qualquer momento, posso ter uma última visão de pessoas que amo porque algumas doenças são invisíveis e silenciosas. E elas às vezes são lentas e dolorosas no dano que causam mas rápidas em nos levar quem mais amamos num susto. As pessoas que eu amo estão envelhecendo e isso nos faz chegar incomodamente perto da imperfeição.

Ao mesmo tempo, além dessas doenças assintomáticas tenho acompanhado de perto a doença de uma das minhas cachorras. Na verdade, June está doente a alguns anos. Algo que nem sequer tem uma explicação clara. E nesse processo percebi que nenhuma doença, na verdade, pode receber um nome preciso, porque em cada corpo ela se torna uma, diferente do que é no corpo dos outros.

A doença passou a ser mais assustadora que a morte súbita, pra mim. É que, assim como a vida não tem sentido, o sofrimento também não. O sofrimento ensina alguma coisa? Só pros dispostos a aprender e nem todo mundo está. E quando o caso é de uma inocente cachorra que sequer precisa refletir sobre a vida ou aprender alguma lição desta vida. Assim como nós deveríamos fazer, a June deveria simplesmente viver. Ela não tem nada pra aprender com a dor que vem sentindo diariamente. Ela inclusive, segue vivendo apesar do que sente, e de certo modo, não é isso que todos nós estamos fazendo também? Porque de certo modo, a partir do momento em que fomos concebidos, tudo que nos acontece só está nos conduzindo pros braços da morte e às vezes essa deterioração é quase imperceptível, em outras gritante, mas sempre infalível. Que falha é essa na matriz da vida que faz com que a gente seja imperfeito a ponto de passar por aqui tão brevemente, sem saber de nada e ainda sofrer enquanto estamos aqui?

Eu às vezes olho pra June e penso se ela sabe que está tão doente a ponto de pensar que pode morrer disso. Será que ela tem essa consciência tão dolorosa? Penso que os grandes feitos da humanidade (não necessariamente os bons, mas só as coisas que nos separam dos outros animais como a guerra, a propriedade privada, a arte e o amor) vieram e vêm da consciência da vida e da morte. Mas ao mesmo tempo, é isso que causa mais sofrimento psíquico, não é? A morte já é cruel demais, mas a agonia de esperá-la me parece a coisa que menos desejo na vida. Penso que mesmo as pessoas mais espiritualizadas lutam contra ela, ou ao menos os corpo delas, já destruído segue travando suas batalhas contra essa última e irreversível derrota. Ninguém quer a morte: só saúde e sorte. Talvez algumas pessoas queiram deixar de existir, mas passar pelo processo de morte consciente, acho que ninguém deve mesmo querer. Penso que isso acontece porque ninguém sabe o que tem do outro lado. Alguns têm suas certezas, mas quem é que realmente sabe e prova o que tem depois que a gente fecha os olhos pra sempre?

A certeza da morte me leva a fazer muitas coisas com aquela pressa de quem sabe que só se vive uma vez. Eu, que sempre estou em agonia amorosa, já tomei mil e uma decisões duvidosas que me deixaram em maus e bons lençóis simplesmente porque pensei "bem, posso morrer amanhã mesmo e não quero fazer isso sem beijar essa boca". Muitas outras experiências, perdões, desistências e decisões já foram tomadas por mim com esse mesmo pensamento em mente. A pandemia tem me roubado essa possibilidade de viver tudo que há pra viver e sinto que isso já é uma forma de morrer. Eu já me sinto um pouco morta, talvez num limbo entre viva e morta.

Eu, que sempre estou mergulhando na profundidade da minha lua em escorpião, penso muito na morte e acho que se eu soubesse que iria morrer em um tempo determinado, ia logo largar tudo e ir fazer as coisas que sempre quis. Também me agonia a ideia de morrer em um hospital. Eu ia querer ficar perto dos meus, passando acompanhada pelo medo e desespero de saber que uma hora - que chega mais rápido do que o planejado - a vida vai acabar pra sempre. Me assusta muito a ideia de pegar covid, por exemplo, e morrer num hospital, sem segurar a mão de alguém que eu amo. E eu morro um pouco mais pensando que por mais que eu me cuide e cuide de quem eu ame, o descaso de tanta gente pode dar esse destino que eu tento tanto, com tudo que eu tenho, evitar pra todos, mas principalmente pros que eu amo.

Já gastei todas as minhas vidas nessa fase da pandemia e do Brasil, mas a vida não é um jogo. Se fosse jogo, teríamos a certeza de que podemos começar de novo. E é por isso, entre outras muitas razões, que jogar é divertido, viver nem tanto. A gente sempre fica com aquela agonia existencial, aquelas perguntas nos cercando e nos fazendo perder o chão, o teto e as paredes.

A dúvida existencial de hoje é esta. Existirmos: a que será que se destina? A vida não tem sentido, nossa passagem consciente por aqui não tem nenhuma explicação que me convença de por que estamos passando por tanto sofrimento. Se isso é obra de Deus, ele é um pai muito cruel que tortura psicologicamente e fisicamente seus filhos e eu prefiro deixar essa família, se for o caso. O sofrimento às vezes é consequência do que fazemos, mas muita vezes é só um azar que nos perfura o corpo e a alma no jogo de roleta russa que é passar pela terra. A morte, nossa única certeza, é ao mesmo tempo a coisa mais incerta que temos que encarar em nossa existência, e aqui, devemos considerar todos os sentidos que a palavra "incerta" pode implicar.


"Cumpriu sua sentença e encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre."

Nada disso faz sentido. E é por isso que eu queria estar vivendo intensamente cada momento desse nosso estranho destino sobre a terra, até me deparar com aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados.

Porque tudo o que é vivo, morre. E eu só queria que a vida fosse bem melhor. (E será?)


(E aqui está um vídeo mais filosófico e cultural sobre a morte pra levantar o seu astral, mesmo falando desse assunto que a gente tanto evita, mas não deveria tanto assim evitar: Pra que serve a morte?)

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