O mundo nos quer em pedaços

Como eu cheguei a mencionar no texto publicado semana passada, estou enfim me permitindo, sem culpa ou pressão, cultivar um dos meus hobbies favoritos: assistir filmes.

Até o momento, estou na saga para assistir os filmes indicados ao Globo de Ouro, mesmo que a premiação já tenha acontecido neste domingo, me deixando inclusive bem satisfeita. Consegui assistir vários dos indicados e fico feliz por ver que existe enfim a tão pedida diversidade nos filmes. Nas categorias de direção tivemos mais mulheres; as temáticas dos filmes são variadas e abertamente políticas em muitos dos filmes e entre os protagonistas não vemos mais os tantos homens brancos heterossexuais que sempre víamos.

Dentre tantos filmes, dois me chamaram a atenção em particular, especialmente pelos dilemas de suas protagonistas. A primeira protagonista com quem me identifiquei é Martha, de Pieces of a Woman, vivida por Vanessa Kirby. Andra Day interpretando Billie Holiday em The United States vs Billie Holiday, revelou a história dramática inspirada em fatos reais da vida da cantora estadunidense.



Pieces of a Woman começa fazendo uma breve introdução das expectativas de um jovem casal em relação ao nascimento de sua primeira filha. Shia La Beouf interpreta um futuro pai aparentemente carinhoso e companheiro. Nas curtas cenas introdutórias, percebemos que ele tem algum desentendimento com a sogra, mas pelo visto o companheirismo do casal supera essas diferenças. Martha entra em trabalho de parto, mas a parteira que acompanhou sua gravidez está em um outro parto e manda uma substituta de confiança para trazer ao mundo o bebê. Acompanhamos cada minuto daquele trabalho numa sequência que parece muito realista (não sei, nunca tive filhos). Ao entrarmos na intimidade daquele momento, percebemos que embora não esteja completamente à vontade com a nova parteira, Martha está decidida a ter seu bebê em casa, mesmo quando as coisas começam a dar errado. Afinal, ela se preparou para aquilo e tem suas convicções para ter tomado aquela decisão, embora não saibamos claramente quais são. Mesmo chamando a ambulância a tempo, o bebê não sobrevive. E a partir daí o que acompanhamos é Martha tentando coletar seus pedaços quebrados não só por aquela experiência, mas também por toda uma vida, como já pudemos supor pela tensão entre sua mãe e seu marido nas cenas iniciais.

Poucas semanas se passaram após o parto, Martha ainda tem que lidar com os desconfortos de um pós-parto sem a alegria esperada quando se tem um bebê na família. Ela decide retornar ao trabalho, mas além das explicações que tem que dar, os olhares de piedade ou incompreensão que recebe, o corpo em puerpério ainda dolorido e em adaptação, Martha também tem que lidar com o luto: o que fazer com o corpo da filha, os detalhes do funeral e os procedimentos legais de suas decisões. É muita coisa. E é dolorido. Mas ela está consciente e aceita as consequências de suas escolhas. É claro que ela ainda está em processo de aceitação. Todos estão, mas a principal envolvida é ela. Ela escolheu o parto em casa, ela aceitou a nova parteira, ela não quis ir ao hospital quando houve complicações, ela escolheu retornar ao trabalho mais cedo após a morte da filha, ela escolheu doar o corpo para a universidade. Martha precisa de seu próprio tempo para lidar, mas está progredindo em sua aceitação do que aconteceu a seu próprio modo, em seu próprio ritmo.

O conflito que carrega a trama é que ninguém ao seu redor se propõe a um diálogo para entendê-la, e no entanto todos parecem ter opiniões sobre o que ela deveria fazer. Sua mãe, seu marido, a lei, o estado, a imprensa. O caso se torna uma polêmica pois a mãe de Martha, aliada à prima advogada e com a ajuda do marido, organizam um processo contra a parteira e Martha, que queria apenas passar pelo seu processo de superação do momento difícil, se vê obrigada a lidar com aquilo também.

Os pedaços da protagonista, que pareciam unidos pela alegria da gravidez e expectativa da chegada do bebê, agora se desfazem. Sua mãe começa a confrontar mais diretamente o marido, um ex-viciado em drogas considerado por ela insuficiente para sua filha já que é um homem sem estudos e trabalhador comum. O marido, além da recaída, não concorda com as decisões da esposa sobre a filha e acaba se envolvendo com a advogada que também é prima de Martha, já que ele não consegue voltar ao que consideraria normal com a própria mulher. Ele chega até mesmo a tentar forçá-la a fazer sexo, mas Martha resiste. A própria Martha sai e tenta se divertir para lidar com tudo e acaba tendo um tipo de envolvimento breve com um colega de trabalho. Só que, ao contrário do marido, antes que o caso passe de um beijo ela parece despertar para o entendimento de que aquilo não irá ajudá-la a superar a morte de seu bebê recém-nascido. O casamento enfim se desfaz quando a sogra entrega um cheque para que o genro desapareça. Ele já estava inclinado a sair dali e parece mais encantado com a amante permissiva em relação ao seu uso de álcool e drogas. Aquele era o seu modo de enfrentar ou no mínimo passar por cima da perda, mesmo que ele também tenha passado por tentativas obscuras de lidar com seu luto. Ele parte, deixando Martha sozinha com as sementes de maçã que decidiu começar a germinar.

Com os pedaços de sua vida desfeitas, enfim Martha é convocada para depor no julgamento da parteira. Pressionada pelo interrogatório dos advogados, acaba colocando a outra mulher em uma posição difícil. No intervalo do julgamento, Martha enfim decide pegar as fotos reveladas que seu marido havia tirado no momento do parto. Ao ver o registro de sua filha em seus braços pelos breves minutos de sua vida, Martha decide voltar ao julgamento e falar em favor da parteira: todas as medidas que poderiam ter sido tomadas por ela para salvar o bebê foram feitas, Martha é que foi autora das decisões principais que levaram à morte da criança, embora absolutamente sem aquela intenção. Martha assume publicamente a responsabilidade pelo que fez e também as consequências de suas escolhas, confrontando abertamente o domínio de sua mãe. Numa metáfora bonita por si só, Martha vê que suas sementes de maçã enfim começaram a brotar e estão prontas para irem para a terra.

Talvez as maçãs sejam como Martha: ainda não estavam prontas para germinar, mas depois do tempo certo, como todos os processos naturais, Martha supera ou aceita seu luto e está pronta para recolher seus pedaços. Anos depois, uma criança aparece subindo uma grande macieira e descobrimos que ela é a filha de Martha. Quer tenha o marido voltado ou ela tenha se acertado com a mãe, o importante é que a maternidade e as escolhas dela agora deram os frutos, porque passaram pelo processo que precisavam passar: a reconstrução de seus pedaços.

Ao longo da trama, sentimos junto a Martha todo o peso de não termos direito ao nosso próprio tempo para lidar com as coisas. Também se torna extremamente pesado o fato de que todas as pessoas ao redor de Martha parecem querer controlar o que ela deve fazer, como deveria pensar ou reagir. Martha tem que lutar, o tempo todo, para que as decisões dela sejam acatadas. Não há sequer o respeito das pessoas que mais deveriam acolhê-la, já que nem a sua família de sangue, representada pela mãe, nem a família que ela escolheu, o marido, se mostram dispostos a um diálogo. Eles não querem entendê-la, não deixam abertura. E embora todos tenham seus próprios processos no luto, ninguém se abre para uma negociação, que poderia vir a partir do entendimento, caso houvesse qualquer tipo de conversa mais profunda. No começo, é possível entender que é difícil conversar. Todos estão imersos em emoções com o luto, mas ao longo do filme percebemos que essas emoções são antigas, rachaduras que já existiam na superfície daquelas relações e que a qualquer momento iriam ceder.

A questão maior, a mais dolorosa, é que Martha havia sentido não só as dores psicológicas de passar por toda aquela situação, mas também as dores em seu corpo. O bebê passou nove meses dentro dela, ela é que o pariu, o segurou nos braços e o viu morrer. Toda a sociedade quer punir se não a parteira, a Martha, por uma decisão que passa pelo corpo dela, sem consultá-la. Sim, a decisão acabou tirando uma vida, mas não de maneira intencional por nenhuma das partes. Martha, no centro disso, perde sua voz porque o estado, a lei, a impressa, sua família, o marido, todos agem para silenciar o que ela quer, como se não houvesse razão em sua maneira de lidar com o luto.

Martha consegue se reconstruir. No fim do filme, a imagem que temos é de uma Martha novamente inteira, embora não sem cicatrizes. Mas nem sempre é assim. Nem sempre se pode colar todos os pedaços de uma vida para tornar uma mulher inteira outra vez. E aí podemos levar em consideração a história de Billie Holiday, inspirada em fatos reais.


O foco do filme é recontar a perseguição que a cantora viveu por ter gravado Strange Fruit, um poema transformado em música que evocava a imagem de um linchamento. A forma de perseguição e agressão era até então comum, legalizada e amplamente difundida contra homens e mulheres negros nos Estados Unidos, em especial no sul do país, onde o regime escravagista normalizou a discriminação, a desigualdade e a violência física, moral e social contra os descendentes de povos escravizados.

A música, muito além de ser um protesto, causava comoção e agitação e incomodava os que se beneficiavam do sistema racista por expor abertamente a crueldade dos linchamentos. Sentindo-se ameaçado pela canção que Billie Holiday gravou e se recusava a deixar de cantar, o governo americano passou a persegui-la. Mesmo se sentindo ameaçada e sendo coagida direta e indiretamente, Billie seguia cantando Strange Fruit, recusando-se a se calar, o projeto do governo passou a ser desmoralizá-la publicamente. Acompanhamos uma caça à cantora que envolvia o envio de agentes para vigiá-la em suas turnês, espionagem e armações para que ela fosse pega usando heroína ou ainda para que drogas fossem encontradas em suas posses mesmo quando ela estava livre delas ou não havia feito uso delas.

Mais uma vez, temos retratado o enorme peso de pessoas em quem Billie confiava traindo sua confiança por dinheiro ou proteção, pensando saber o que era melhor para ela. Aqui, havia o agravante de que tudo tinha consequências muito sérias e reais. Por sorte, a intérprete tinha pessoas em quem confiava, que estiveram sempre ao seu lado e que respeitavam suas escolhas e decisões. Mas nem a proximidade desses protetores foi suficiente.

Ela era uma mulher com suas fragilidades e obstáculos pessoais. Assim como Martha, Billie lutava para carregar a bagagem de sua vida da melhor forma possível. O filme não segue uma narrativa exatamente linear. Depois de algumas cenas mais adiante no tempo, no qual vemos a diva cansada e desgastada pelo tempo e pela exaustão, lidando com perguntas racistas e machistas sobre sua carreira e as polêmicas envolvendo sua vida, voltamos ao começo do tempo em que foi perseguida pelo governo dos Estados Unidos. Apesar do uso de drogas, que Billie dizia serem necessárias para lidar com o nervosismo do palco, as primeiras cenas do filme nos mostram uma cantora alegre, relembrando os passos de dança que aprendeu ou brincando com seus cães, flertando com um admirador que mais tarde se revela um agente do governo designado para espioná-la e com quem vive um relacionamento inicialmente conturbado e depois amoroso.

O que vemos na história é o governo, o estado, a lei, a polícia, a opinião pública, entidades enormes perseguindo individualmente uma única mulher. Eles usam suas fragilidades para tentar destruí-la como pessoa, pois só assim ela e sua música deixariam de ser vistos como ícones de luta pelos direitos civis que o filme nos mostra. Ao menos foi isso que tentaram fazer com ela, e espero que o filme possa restituí-la de sua grandiosidade apesar de seu coração e corpo agora partidos pela vida e todas essas forças descomunais. Dona de uma trajetória marcada pela pobreza, filha de uma prostituta e passando por estupros e relações amorosas e de negócios abusivas, Billie era frágil, com rachaduras bem visíveis mas que não precisavam necessariamente ruir e quebrar. Em um cenário otimista, ela poderia se reconstituir e mesmo que seguisse rachada, estaria inteira como era, ou ao menos não faltariam nela tantos pedaços. Não fossem os homens e as instituições controladas por eles ao seu redor, abusando de seu talento, sua inabilidade para conciliar relações amorosas e carreira e tentando parti-la completamente. Por ser uma mulher negra e livre de muitas convenções impostas para a sociedade, seu abuso das drogas era visto com muito menos compaixão pelo público e pelas autoridades.

As retaliações que ela viveu não cessaram nem no momento de sua morte. Segundo a nota ao fim do filme, ela morreu enquanto estava em tratamento contra cirrose, sendo interrogada sem a presença de advogados. Presa em sua cama de hospital (depois de já ter passado, anteriormente, um ano inteiro na prisão por porte e uso de heroína), Billie tinha negados até mesmo os seus direitos de se reconstruir no seu próprio tempo. Não tenho a intenção de romantizar o uso de heroína como saída para lidar com suas questões. Mas Billie tentou e começa o filme dizendo que desejava parar. Ela também nunca teve a chance de tentar por si só, já que sempre foi pressionada por fatores externos. O tempo interno não estava certo, ela não estava pronta para lidar com a vida e a pressão externa fragilizou ainda mais alguém que já não estava bem. Talvez Billie não estivesse nunca pronta para se recompor, mas era uma questão dela e ela não teve a chance de se mostrar assim com dignidade.

Billie ainda me chama a atenção por que as relações abusivas pelas quais passou são fruto de uma baixa auto-estima e um entendimento dúbio sobre as relações, que provavelmente a acompanharam a vida toda. Quando conhecemos sua origem e entendemos sua história, sabemos porquê alguém tão talentosa, bonita e amável caiu nas mãos de quem caiu. É muito fácil, enquanto mulher nunca amada, se identificar com o modo fácil com que ela aceita tantas coisas ruins em troca de pouco. Seu talento, seu corpo, sua vida são explorados, mas ao menos, no fim de sua vida, ela encontrou uma relação de respeito. A proximidade com o agente do FBI destinado a espioná-la (que é ficcional, pois não se sabe se os dois tiveram de fato um caso amoroso, embora tenham se tornado amigos e Fletcher tenha se arrependido por seu papel na perseguição de Billie.) é uma das poucas relações da cantora no qual seu tempo, seu passado, suas falhas são respeitadas, entendidas e acolhidas. Se ela tivesse mais daquilo antes, seu talento e sua persona pudessem ter estado entre nós por mais alguns bons e longos anos.

O que os dois filmes me fizeram lembrar é que cada um tem seu tempo próprio pra lidar com as suas questões, sejam elas quais forem. Algumas questões são simples, embora não simplórias. Outras são complexas e muito mais doloridas. Mas se tivermos o tempo e o espaço para lidar com elas, podemos voltar a ser mais inteiras. Nossas partes podem voltar a se colar, mas o mundo nos quer em pedaços. É mais fácil lidar com os pedaços frágeis e desconectados de uma mulher do que com ela inteira. Se pertencemos a outras classes excluídas do poder, então ao invés de nos partirem em apenas alguns pedaços, podemos nos tornar cem ou mil cacos e aí é muito mais difícil juntar cada partezinha, voltar a se colar, ser inteira outra vez.

Estar em pedaços acontece, mas é preciso cuidado e apoio para que não nos dividam ainda mais. E tempo. E compreensão das nossas escolhas. Mas não querem nos dar essas coisas. Afinal, quando a gente se une, nossas partes podem se tornar ainda mais fortes, se não estivermos totalmente danificadas.

A reflexão que fica é como para a sociedade, interessa uma mulher quebrada porque ela é mais fácil de ser controlada. Martha, no controle de sua narrativa, luta contra os pedaços que querem arrancar dela e para recompor o que está quebrado. No fim, consegue se impor diante das pressões dos outros porque enfim consegue estar inteira. Já Billie, acabou ficando eterna e irreversivelmente danificada. 

Ninguém precisa estar inteira o tempo todo. Temos direito a nossas fragilidades. Algumas rachaduras acontecem simplesmente por estarmos vivas e em movimento. Mas para as mulheres, como Martha, Billie ou eu, ou você, ou qualquer outra, os momentos de fraqueza, os erros, as dificuldades são usados contra nós, como estratégia para que a gente se submeta ao que creem que é certo, ao que desejam independente da nossa vontade. Não é fácil se recompor e estar inteira quando não nos permitem que colemos nossos pedaços em paz, não nos dão tempo para que a cola seque e os cacos se firmem novamente. O mundo nos quer em pedaços e vai lutar pra nos esmagar. Mas enquanto houverem histórias como as dessas mulheres, ficcionais e reais sendo contadas, podemos reunir nossas forças pra seguir inteiras.

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