Primeira pessoa: O ano em que não saí de casa

Ontem completei um ano em casa. Não tem o que celebrar depois de um ano de pandemia. Mas tem o que co-memorar, muito pra lembrar junto, embora não tão bom de se lembrar. Porque é assim que é a vida: outras gerações tiveram suas grandes dificuldades para moldá-las, coisas que alguns superaram, outros foram infelizmente superados por esses obstáculos mas todos irão se lembrar.

Eu me lembro que subestimei a doença, os efeitos de uma pandemia, e o tempo que teríamos que ficar em casa. Também superestimei o bom senso das pessoas, a noção de coletividade da saúde no caso de uma transmissão viral mas acima de tudo eu superestimei a capacidade das coisas se resolverem sozinhas ou facilmente, ainda mais sob um governo que está nos desgovernando e nos matando.

Se me serve de consolo, nunca estoquei papel higiênico. E esse é um típico clássico de piada em tempos difíceis, só pra me alienar do terror que segue acontecendo e nunca acaba. Não tenho muito ânimo pra fugir e me alienar sempre, mas ao menos eu sorrio às vezes.

Aliás, ri muito pra não chorar e chorei muito pra não chorar mais ainda depois também. Quem não chorou deveria se preocupar porque ou essa pessoa não liga pro que está acontecendo ou está muito alienada. E não me levem a mal, escapar pra lugares mentais seguros e confortáveis é importante e eu diria, essencial, mas viver em completa separação do coletivo só faz o baque maior, mais doloroso e grave quando, inevitavelmente a realidade cair sobre nós. Então é, eu me alienei muito também, dentro da minha cota de fuga possível. Não deixei de saber sobre o mundo, mas tentei focar no que me diverte e não envolve álcool em gel, máscaras e notícias ruins. E foi essas fugas que me salvaram: Li muito, vi muitos filmes, séries, fiz as aulas e cursos que pude e nesses momentos eu pude me transportar pra realidades paralelas nas quais a vida não estava tão ruim assim. E isso é um direito ao qual muita gente não teve acesso. Pensar nisso me deixa mal. 

Tudo está terrível, pra alguns pior ainda do que está pra mim. E foi a primeira vez que tive tantos motivos pra me sentir mal com tanta frequência e às vezes com pouco ou nenhum alívio apesar das distrações que tentei buscar. Isso me tornou um pouco mais pessimista, algo que nunca pensei que aconteceria a uma otimista incorrigível como eu. Ainda consigo enxergar o lado bom das coisas, mas com muito, muito esforço, como se o otimismo fosse uma agulhinha de costura no meio de um palheiro bem grande e escuro, sem lanterna. Só que, como as agulhas, o otimismo agora está me espetando. A esperança começa a ser dolorosa também, como se eu já soubesse (e sei) que logo eu vou me desiludir e descobrir que tudo está pior do que eu podia enxergar pelas minhas lentes coloridas. Chega a ser vergonhoso nutrir grandes esperanças porque todo mundo sabe que tá tudo muito mal.

Eu aprendi muito mais sobre quem sou, mas não acho que eu precisava mesmo saber que sou muito mais carente do que imaginava, que me afeto muito mais com o coletivo do que parece, que sou muito mais difícil na convivência diária do que queria e que sou uma pessoa péssima quando estou confinada. De certo modo, foram confirmações sobre coisas que eu já imaginava mas que eu não precisava comprovar assim. Ninguém precisava passar por isso e muito menos da forma que estamos passando.

Mas é claro, é isso que nos coube e eu me adaptei. Muita gente se adaptou. A gente se acomoda a tudo, inclusive coisas terríveis como essa. E seria bem pior se a gente nunca se acomodasse. Será que a gente teria forças pra seguir se todo dia doesse tanto ter tantas mortes e perdas?

Mas não é porque estamos acomodados que há estabilidade. Dentro desse horror infinito existe uma montanha russa de emoções que ora nos leva pro subsolo dos sentimentos, e em outros momentos nos leva pra um plano médio. Não consegui chegar às alturas e duvido muito que alguém com senso de humanidade tenha conseguido se sentir super bem e feliz em meio a isso tudo. A plenitude verdadeira se tornou escassa, mas a gente já está se contentando com o que não é tão ruim assim. Isso tem lados ruins e alguns benefícios que eu, enquanto pessoa otimista ainda tento encontrar.

A agulha que me espeta no meio desse palheiro de desesperança é que: de certo modo, sinto que amadureci e saí do mundo de Poliana. Me sinto, enfim, mais adulta.

Tenho mais certezas doloridas, tenho mais incertezas, traumas e preocupações e uma enorme quantia de tempo perdido. Por enquanto, vamos lidando com isso como dá e depois a gente vai seguir fazendo isso: o que dá pra fazer. Porque a vida continua, né? E isso chega a ser bonito: não importa o quanto ela esteja horrível, ela segue adiante, mesmo que agora seja só um fantasma do mundo enorme que é a nossa casa em escombros. Dentro de casa, no nosso mundo reduzido mas seguro, a vida ecoa pelas paredes. Por enquanto, só um eco do que já foi, mas ainda saindo de dentro de nós, se espalhando por aí e batendo em paredes até que seja seguro abrir as portas, as janelas e espalhar nossas vozes por aí.


Life goes on - BTS

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