Namjooning: Não faça coisas úteis com seu tempo

O capitalismo faz com que o nosso tempo pareça valer dinheiro. Você já deve ter repetido que tempo é dinheiro. Cada hora do seu dia passa a ter o valor do que você ganha com o seu trabalho. Se você não está trabalhando está perdendo dinheiro. A gente precisa de dinheiro pra pagar as contas e antes disso, pro mais básico: pra comer. Aparentemente, deveríamos estar ganhando dinheiro o tempo todo.

Eu já repeti que tempo é dinheiro. Eu às vezes ainda repito isso. Meu trabalho é autônomo, eu tenho boletos pra pagar, eu tenho um medo no fundo da minha alma de que eu não consiga me sustentar. Ai, o capitalismo! Fez a gente acreditar que estamos competindo pra sobreviver e que precisamos do dinheiro. Em uma outra sociedade, mais justa e ainda tão longe de existir, estaríamos acreditando na realidade: O ser humano não sobrevive porque compete com outros indivíduos e grupos. O ser humano só sobrevive porque coopera com outros indivíduos e grupos. 

Na sociedade mais atual o senso de competição e a urgência para direcionarmos todo nosso tempo pra ganhar dinheiro é ainda mais impositiva: existe uma nova classe de empreendedores. Pessoas desvinculadas das indústrias mas ainda inseridas nos sistemas com mais dificuldade de se articular e se entender enquanto classe trabalhadora e constantemente se pressionando a trabalhar mais, a ganhar mais, e não parar porque agora a sobrevivência parece estar apenas nas mãos dos indivíduos. A uberização dos trabalhos tira as responsabilidades do coletivo, do chefe, de uma indústria. Neste cada um por si sem saída, nos tornamos muitas vezes nossos próprios patrões exaustos mas ainda assim nos impulsionando a trabalhar mais ou a usar nosso tempo investindo para que a gente possa ganhar mais com o trabalho. E já que cada um cuida de si, no nosso tempo livre temos que cultivar a nossa saúde, indo à academia ou fazendo esportes pra que a gente tenha um rendimento melhor... no trabalho. Ou então a gente é estimulado a fazer cursos para... nos aperfeiçoarmos no trabalho. A gente comprou mesmo a ideia de que tempo é dinheiro e acreditamos que temos que viver pra isso.

Na sociedade do cansaço tudo precisa ter função, e o tempo precisa ser gasto com algo útil. Os mecanismos para que aceitemos tudo isso como o ritmo normal da vida são explicitados detalhada e teoricamente no livro do filósofo alemão ByungChul Han com o nome de Sociedade do Cansaço. A obra foi uma das minhas leituras do ano passado e eu diria que a mais transformadora em relação à minha visão de mundo. Com este livro me dei conta de algo que indiretamente eu já sabia: os nossos hobbies só são valorizados se forem úteis ou se, de alguma forma, contribuírem para esta lógica capitalista de auto exploração ou quando eles são parte da máquina do sistema capitalismo. Quando não fazemos nada, ficamos perdidos ou culpados, mas é justamente o tempo sem utilidade, a atividade sem função que nos engrandece enquanto seres humanos.

Byungchul nos relembra como a lógica de trabalho incansável nos roubou o tempo de festa, a pausa sem utilidade, o dolce far niente. Esses momentos não só são desvalorizados como também chegam a ser perseguidos, em especial quando ele se manifesta nas camadas mais populares. O corpo e a mente humanas não foram feitos para o trabalho regrado e constante nos moldes atuais. Então, chega a ser perigoso para o sistema deixar pobres e a classe trabalhadora sentirem o gostinho doce do tempo à toa, em festa, sem utilidade. Um belo exemplo disso é como o carnaval, a festa popular brasileira com maior abrangência entre as classes é perseguido por uma parcela elitista da sociedade. O Carnaval só é aceito, tenham certeza, porque o capitalismo cooptou a celebração do adeus à carne (e às regras sociais) e transformou uma festa social em um grande momento de circulação de dinheiro. O mesmo acontece com os bailes funk das periferias do país, perseguidos, criminalizados, julgados e culpados, embora o ritmo venha sendo cada vez mais valorizado para a diversão das classes médias e altas. Voltando ao exemplo anterior, a gente mesmo abraça essa lógica de que o trabalho é que é importante e engrandece o ser humano. Não, ele não engrandece. O trabalho repetitivo, alienado e sem retorno justo diminui o ser humano. Mas precisamos parar. Não somos biologicamente feitos para o trabalho. E aí repetimos "o trabalhador merece 3 dias de descanso no Carnaval."

Merece mesmo, mas não por trabalhar. Merece simplesmente por existir! Essa pausa e as outras que temos ao longo de nossas jornadas infinitas de trabalho só nos são concedidas pelo mercado para que a gente possa estar descansados física e mentalmente e prontos para voltar ao trabalho. A pausa é essencial para a nossa produtividade, como descobriram recentemente, e é só por isso e pela luta de trabalhadores que vieram antes de nós é que não estamos (todos) trabalhando em jornadas como as do início da revolução industrial ou mesmo em regimes de escravidão. Quando somos trabalhadores autônomos, fica mais difícil ainda parar. Já que tempo é dinheiro, se o entregador de ifood, o motorista do uber, a professora de dança ou a cozinheira que faz salgado pra fora não trabalharem, estão perdendo dinheiro. Pra sociedade, o tempo de folga, especialmente para estes trabalhadores é tempo perdido.

Uma revolução que retire os capitalistas do poder, modifique nossa relação com o mundo e refaça o sistema de trabalho é a única saída para que o fazer nada, sem motivo algum e o festejar possa ser aceito para todos como é aceito para as pessoas ricas, entre outras muitas vantagens que talvez sejam imediatamente mais urgentes que ter uma folga de verdade. Os capitalistas que falo aqui são milionários e bilionários, que não deviam nem existir num mundo onde ainda tem gente passando fome e morrendo sem acesso a direitos tão básicos quanto a água, comida, saneamento básico e acesso a um sistema de cuidados com a saúde. Mesmo com a consciência de que é injusto alguns terem tanto quando muitos têm nada, você com certeza já pensou no que faria caso se tornasse bilionário e certamente não trabalhar, trabalhar menos ou trabalhar com algo que gosta (mas não necessariamente é útil), foram coisas que passaram pela sua cabeça. No nosso mundo como está, estamos sempre perdoando os super ricos por seus luxos, porque afinal, gostaríamos de fazer o mesmo, mas muitas vezes nos vemos cobrando e punindo as classes que produzem a riqueza desses poucos para que trabalhar seja a nossa única função.

Precisamos nos desconectar dessa ideia e entender que o dolce far niente também é uma forma pessoal, individual e importante de resistir. As micro-resistências são importantes também, porque se espalham. São a recusa do que nos é imposto. É o preferiria não de Bartleby, o escrivão. (Esse podcast sobre a obra é indispensável para todos que prefeririam não!)

Não fazer nada nos permite a contemplação, algo essencial para nossa mente lidar com todas as informações que assimila ao longo de nossa jornada. No tempo considerado inútil, refletimos sobre a vida. É nessas pausas que nosso corpo entende que a verdadeira saúde tem um pouco de doença: dormir tarde porque se está ouvindo música e dançando, uma ressaca porque você bebeu com os amigos ou, sei lá, pra quem está tendo sorte na vida romântica e sexual em meio a uma pandemia, aquela dorzinha nos músculos por atividades intensas entre os lençóis (saudades, inclusive kkkrying).

Não fazer nada útil, sempre que possível, acaba se tornando uma arma individual de resistência ao sistema. Não estou sendo irresponsável de dizer que todo mundo deve parar de fazer coisas úteis para suas carreiras, afinal ainda fazemos parte desse sistema. Só estou dizendo que muitos de nós (provavelmente, quem tem acesso à internet ou celular e está lendo este blog faz parte desse nós) não está em uma condição de competição capitalista na qual vai de fato passar fome e correr risco de morte caso se permita não ser útil ao sistema por algumas horinhas. Eles nos fazem crer que precisamos trabalhar pra viver mas a gente não vive de verdade se só trabalhar. Também não estou dizendo que tudo deve ser dolce far niente. Para os que têm interesse e já entendem a importância da luta coletiva, parte do nosso tempo livre também pode e deve ser direcionada ao engajamento em atividades que construam um mundo anticapitalista, onde as causas que defendemos serão de fato contempladas. E inevitavelmente, temos que trabalhar.

Namjooning: 1. Apreciar a natureza e a arte; 2. Desfrutar da sua própria companhia e dos outros; 3. Passar tempo fazendo coisas que você ama



Se você acompanha BTS sabe que uma das coisas que Kim Namjoon, conhecido também como RM, mais gosta de fazer no seu tempo livre é o que chama de Namjooning. (Se não conhece BTS, reveja toda a sua vida!) O verbo Namjoonar, criado pelo próprio, evoca a apreciação dos hobbies do músico: ir a museus e galerias de arte, passar tempo na natureza, andar de bicicleta, fazer trilhas, passar tempo com as pessoas que gosta, fazer coisas que ama, por mais simples e pouco funcionais que sejam, tipo cuidar dos seus bonsais. Namjoon é um jovem, agora milionário, e que apesar de sua fortuna provavelmente trabalha mais do que uns três proletários comuns trabalham juntos. Ele é uma exceção entre as pessoas super ricas e de fato tem dinheiro agora porque trabalhou muito e arduamente para isto. Claro que ele tem alguns privilégios, especialmente agora. Mas o que vamos falar aqui é sobre como ele aprendeu que precisa desse tempo livre, no qual não faz nada que seja essencialmente útil para composição de suas músicas e criação de suas letras ou que fortaleça sua performance sobre os palcos. Ele até mesmo diz, em algumas ocasiões, como é aquilo que muitas vezes o faz se lembrar de que é um ser humano normal, como nós, trabalhadores comuns.

Kim Namjoon não inventou o dolce far niente, que acredito que nem ele mesmo chama de "fazer nada" mas ele popularizou a ideia entre as centenas de milhares ou talvez milhões (alguém já fez uma estatística de quantas pessoas se autodeclaram armys?) de fãs que acompanham sua carreira. Naquele nicho, nem tão pequeno assim, ele nos relembra a importância da pausa, da apreciação, da contemplação. E isto vem de um homem provavelmente mais atarefado do que todos nós e com a liberdade de fazer o que quer quando quer muito mais limitada do que a nossa.

Eu não vou falar sobre como Namjoonar na natureza tem sido difícil pra mim durante a pandemia. Não vou elaborar sobre como isso me faz falta, porque faz e muita. Mas vou falar do que ainda é acessível, de um modo ou outro pra quase todo mundo. A arte.





O "não fazer nada útil" também passa pela apreciação da arte. E aqui eu falo de todas as expressões possíveis: música, literatura, poesia, filmes, esculturas, dança. A arte, como tudo mais inserido no nosso sistema, muitas vezes é parte dele. Mas quem ou quê não é parte do nosso sistema? No entanto, em sua essência, ela é básica e essencialmente inútil à necessidade de produtividade que nos impõem. Mesmo tendo sido cooptada e hoje ser parte de sustento de alguns e enriquecimento de outros, ela não supre nenhuma necessidade de sobrevivência imediata. É justamente a capacidade de produzi-la e apreciá-la que nos distingue, enquanto espécie, dos outros animais. Não tenho como intenção nos afastar dos animais, inclusive, somos mais instintivos do que admitiríamos do alto de nossa arrogância separatista. Também não somos, de modo algum, melhores do que os animais não-humanos porque simplesmente somos capazes de produzir arte, mas sim, é isso que, ao meu ver, nos torna humanos e não como os outros animais... ou robôs.

Nós temos (quando nossas necessidades básicas estão saciadas, obviamente!) a capacidade de refletir e elaborar questões sobre o que existe além da nossa sobrevivência básica e palpável e podemos usar linguagens diferentes (música, escrita, audiovisual) para registramos nossos pensamentos sobre o que existe de metafísico. Basicamente, para sermos algo além de máquinas servindo ao sistema e lutando para sobreviver, precisamos dessa forma de expressão. No entanto, para que a arte exista, precisamos da pausa para contemplação, precisamos do tempo de aprendizado, reflexão, prática e execução. Tempo que nos é tomado por nossas obrigações, muitas vezes auto impostas, do mundo capitalista. 

No meu tempo livre, estou buscando essa vida de verdade, além da produtividade. Obviamente eu tenho o benefício de uma vida de classe-média bem confortável que me permitiu fazer isso de alguns modos. Ano passado, depois de ter saído de um emprego no qual trabalhava aos sábados, finalmente pude assistir filmes toda semana, uma coisa que a exaustão física e mental somada a um excesso de compromissos não me permitia quando eu trabalhava como professora de inglês. Nisso, consegui assistir a muitos filmes indicados ao Oscar. Por muito tempo eu me interessava em opinar sobre esses filmes premiados porque eu amo o cinema, mas eu costumava ver só um ou dois por ano. O Oscar carrega consigo todas as problemáticas da indústria cinematográfica (que jamais deveria ser uma indústria, pra começar)? Sim. O Oscar me fez consumir esses produtos? Talvez sim, talvez não.

A arte não é feita para ser consumida, como o alimento é, por exemplo. Ela deve ser apreciada, digerida em seu tempo próprio, sem pressa. Eu assisti os filmes com a intenção de ver vários, mas também com o intuito de, enfim, poder fazer o que eu gosto mesmo que assistir muitos filmes não engrandeça meu currículo ou me torne uma professora de Yoga (minha atual profissão) melhor, ou mais produtiva. Eu vi muitos filmes sim, mas mais para apreciá-los do que para dizer que os vi, que é algo que muitas vezes nos pressiona na cultura de maratonar séries, filmes, livros e até música.

Tenho assistido muitos filmes desde então. Os do Oscar, todos do Estúdio Ghibli, esse ano estou na missão de assistir o máximo dos indicados ao Globo de Ouro e então depois eu vejo se consigo assistir aos das outras premiações também. Não faço isso para escrever sobre eles, embora eu tenha pensado em fazer isso e tenha me inspirado em muitas dessas obras para compor a minha própria obra. Também não quero ganhar algo em troca. Fiz apenas porque eu gosto e quis. Sem saber, eu estava Namjoonando. Não foi para entrar na lógica da competitividade também. Não me interessava ser a pessoa que mais assistiu filmes, eu , mas apenas porque eu queria entender o que diziam sobre cada um deles e poder opinar com propriedade. Eu fiz algo de absolutamente inútil com o meu tempo. E recomendo demais, tanto que já estou assistindo os indicados ao Globo de Ouro desse ano só porque eu quero mesmo.

Ano passado, por conta da pandemia, também li muito e redescobri como é bom ler poesia. E consegui assistir mais séries, coisa que sempre foi difícil pra mim. E tenho assinado muitas newsletters literárias. Tenho não só criado arte, que também precisa da pausa para contemplação e assimilação do mundo até sua transformação em outra linguagem, mas também tenho apreciado mais a arte dos outros. A arte, principalmente a ficcional, tem me salvado do mundo como está. Parando para apreciá-la, e nada além disso, consigo sair das redes sociais que, embora sejam minha forma de contato com outros indivíduos além da minha família, também me sufoca. Nessas pausas, esqueço um pouco de como estamos em uma pandemia que está levando centenas de milhares de nós, não me lembro da gestão terrível do país ou das injustiças do mundo. Mesmo que os filmes, séries, livros, músicas, pinturas, sejam sobre o mundo, a arte me permite ser apenas espectadora por alguns instantes. De um lugar seguro, observo sem fazer nada, até porque pouco está em perigo de verdade quando se trata da arte. Quase uma prática de filosofia budista.

Não quero dizer aqui que a arte não tem um sentido e não me ajuda a pensar., porque ela faz. E é bom lembrar que até essa outra função, de desenvolver o intelecto pode ser cooptado pelo capitalismo. Eu não quero sempre assistir filmes necessariamente para refletir sobre a sociedade e trazer essas reflexões para um produto cultural mais crítico que eu possa criar. Como escritora, professora ou em qualquer outra profissão, o pensamento crítico é valorizado até certo ponto, desde que não questione o mundo como é. Eu quero assistir só porque é o que gosto mesmo. E se precisar eu vou usar o que a arte me trás para questionar o mundo. Mas mesmo sem questionar: não fazer nada já é contrariar o que esperam de nós.

Convido você que está lendo este texto a usar seu tempo livre desse modo em algum momento, se você ainda não faz isso: fazendo algo que gosta é é totalmente inútil ao capitalismo.* Não é para sua saúde física ou mental, não é porque vai ser bom pra você futuramente, embora seja bom pra sua saúde global e pro seu futuro. É só um tempo bom por você e pra você. O jeito mais fácil de resistir, de não se deixar levar, de fazer o que ama só porque é bom, mesmo que queiram que você trabalhe incansavelmente: Namjoonar. Namjooning. Namjooner.

Completamente inútil, e por isso mesmo, um sinônimo de viver de verdade.



*Às vezes o que é inútil ao capitalismo faz parte do capitalismo. Por isso, falo aqui de ações que envolvam apreciação. Visitar um museu (quando eles reabrirem!) faz parte do capitalismo, mas não te torna mais produtivo, então mesmo fazendo parte da lógica, já que você paga para entrar ou um banco (Não preciso nem explicar como um banco serve ao capitalismo, mas basta um Google, pra quem ainda não se ligou nisso!) financia aquela exposição pra não ter que pagar imposto ou pra fazer marketing, é uma ação que está patrocinando a arte. Sempre que possível, fugir desse tipo de consumo é importante. Se tiver acesso, ao invés de uma exposição em uma super galeria, vá também à uma exposição de artistas alternativos. Assista um filme independente (pagando ingresso, sem pirataria aqui!), compre um livro nacional, compre um quadro de um artista local que você gosta, consuma zines!

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