Escritas: Só as emoções são fatos

 Dizem que a gente tem que escrever o que gostaria de ler e eu me comprometo muito com isso. Claro que em meio a isso, as coisas que eu gostaria de ler tem muita questão política: eu gosto de ler livros com personagens diversos, que não se prendam a uma única narrativa sobre uma determinada característica deles, gosto também de ler histórias que saiam do lugar comum do sistema e das soluções liberais da nossa sociedade burguesa.

Acho importante a leitura fazer pensar, mas como tudo é político, qualquer ponto pode gerar uma grande reflexão, dependendo de quem lê aquela vivência nova. Mas quando eu falo em escrever o que eu gostaria de ler, não falo só sobre as reflexões que gostaria que a leitura me despertassem. Falo principalmente sobre o que eu gostaria de sentir ao ler.

Eu gosto de sentir emoções. Conscientemente, todas elas são bem vindas pra mim hoje. Inconscientemente há coisas das quais eu fujo e também há momentos em que eu evito certos sentimentos. Para mim, a leitura é um modo de formar imagens na minha cabeça que contam uma história. As histórias só são registradas quando essas imagens multidimensionais em minha mente me fazem fazem sentir coisas. Ninguém ama a história do Peter Pan, quando somos crianças, porque entendemos tudo que ela implica, mas porque nos sentimos a empolgação de aprender a voar e conseguimos nos sentir naquelas aventuras com os meninos perdidos. Mesmo adultos, podemos até apreciar a forma, os recursos que o autor usa, as implicações sociais. No entanto, o que nos prende a cada história é o frio da barriga que sentimos junto com um personagem enquanto um romance vai se desenrolando. Ficamos tensos com um suspense, nos desesperamos pra saber a solução de um mistério, e mesmo o medo de um terror ou a angústia de um drama são capazes de nos conectar ao enredo. Afinal, é essa uma das vantagens que a ficção nos proporciona: a possibilidade de lidar com todos os sentimentos, até mesmo os indesejáveis, de forma protegida e segura. Quando o livro se fecha, a emoção acaba, deixa de nos afetar. Ou não. Mas a partir do momento em que não estou lendo, o que acontece comigo é que deixo de sentir tanto, começo a pensar sobre a história. E o pensamento é que toma pra sia o cargo de me fazer sentir coisas. Como quando se assiste um livro sobre um abuso, por exemplo, e enquanto lemos sentimos o desespero da personagem ou asco do abusador. Pelo menos comigo, o que acontece é que só quando o livro acaba ou eu interrompo a leitura para pensar sobre como o abuso se desenvolve, no caso deste exemplo, é que eu penso: "nossa, já estive em situação parecida, escapei por pouco" e é o pensamento que me causa a sensação de alívio por estar bem ou de tristeza por me lembrar da situação. Enquanto leio (e isso vale também para filmes, séries, música) eu sinto mais do que penso.

Quando escrevo, costumo fazer o exercício de me colocar no lugar daquela personagem, com aquelas características, para entender como elas se sentiria em suas trajetórias. Deve ser o que muita gente faz ao escrever também. Mas pra mim essa parte do processo é crucial. Não consigo escrever algo que também não me envolva, que também não me faça sentir algo que me pareça verdadeiro. Uma das minhas preocupações ao escrever ficção é que eu transmita essa sensação. Não quero, intencionalmente, fazer ninguém pensar, quero fazer quem leia sentir! No meu caso, quando tenho dificuldade de entender o local emocional de onde saem os sentimentos de um personagem, não entendo como expressá-lo, e por isso meus personagens muitas vezes são parecidos comigo. Enfim, o sentir é essencial para a minha escrita.

Ultimamente, tenho entrado em um processo de compreender com cada vez mais clareza que o que eu sinto tem muito mais peso do que eu já admiti. Foi difícil aceitar isso. Fui criada, educada e inserida em família, sociedade e cultura que valorizam tanto o racional e não deixam espaço ou tempo para explorar as emoções, os sentimentos. Quando eu não lido com as emoções, isso prejudica o racional. Não dá pra passar o que sinto por cima do que sei e entendo, embora estes dois últimos verbos muito me interessem também. Minha conclusão é que sentir é o que fica, afinal. Kanye West já disse: Feelings are the only facts. Nossa memória, o que contamos historicamente, tudo passa pelos sentimentos.




Inclusive, nossa capacidade de compreender narrativas e abraçá-las só acontece porque somos capazes de, primeiramente, sentir o que a personagem real ou fictícia sente. Nos colocamos no lugar dela, sentimos sua dor, sua alegria, seu medo, seu amor. Só depois a gente pensa sobre aquilo, só depois dissecamos os símbolos das falas. E ah, outra coisa que a gente esquece porque não valorizamos o nosso lado emocional: as nossas sensações são parte do que a gente pensa também. 

Eu falei sobre o meu processo de sentir as emoções para escrever ficção, mas saindo um pouco dela, é cada vez mais evidente pra mim que elas têm também um grande peso em outras coisas que escrevo. As minhas poesias, sempre bem pessoais eu já compreendia como parte de um processo de digestão de sensações e emoções. Mas ultimamente, as minhas percepções do mundo tem ficado mais evidentes até no blog ou na newsletter. Eu achava que as coisas que sinto tinham pouca influência sobre esses textos mas percebo agora que ultimamente tenho escrito muita coisa mais pesada, mais profunda, mais angustiada porque é como me sinto na maior parte do tempo porque... bem, é o Brasil de 2021, né? Na ficção, quantas vezes me vejo com a intenção de escrever alguma coisa que, a partir do momento que começo a escrever, começa a me passar uma sensação de que não deveria ser daquele jeito, e aí o texto vira outra coisa? Somos ensinados a controlar sentimentos, mas eu estou aprendendo a me deixar atravessar por eles através da escrita. Eles vêm até mim, me tomam, ou as vezes realmente só passam por mim, sem me controlar totalmente, só compartilhando meu corpo, e aí eu me vejo meio que como esse instrumento mediúnico entre a força criativa e a realidade.

Nunca tive muita dificuldade em sentar e escrever, porque tudo que eu sinto pra escrever só vem. Editar é outro processo. Revisar é outro processo. Fazem parte da escrita também, mas são a parte mais racional. Tenho me dado conta de que minha escrita envolve sentimentos numa proporção muito maior do que pensamentos, e por isso pra mim é tão fácil escrever, mas não é tão fácil editar, revisar, reescrever. Entender meu processo, o peso tão grande das minhas emoções na escrita e na vida, tudo isso tem a ver com meu amadurecimento em relação ao entendimento da minha arte.

Não sei porque escrevi esse texto, racionalmente. Só senti vontade e segui essa vontade. A parte racional, pensar no que ele traz, eu deixo pra vocês. O próprio nome do blog indica: escrevi pra tirar da cabeça. Também não sei se esse texto virou um aconselhamento, e nem se eu estou em lugar de dar dicas a alguém. Mas eu diria que se você quer fazer qualquer tipo de arte, o sentimento deve ter mais lugar que o pensamento. Afinal, como é que a arte vai ter importância se for puramente ligada ao intelecto? Se não pra fazer alguém sentir, não vira fato. E só as emoções são fatos.

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