Mary Shelley
(Ou para todos os monstros que já criei)
Inventei cada detalhe da sua anatomia para dar corpo a todos os meus desejos. Te criei à minha imagem e semelhança, porque vi no espelho seu rosto e seu corpo e comecei a pensar como seria ser eu em outra carne, como seria sentir em outra pele. Atravessei o espelho e te fiz como te via: igual a mim, mas do avesso.
A sua expressão corporal é minha.
Toda anatomia é imaginada, e é a partir de palavras que você se torna palpável pelas minhas mãos. O arrepio é real, mesmo que o toque dos dedos não sejam. E cada toque deixa impressões. Vamos nos tateando e expressando quem somos, a partir um do outro.
Fui eu que criei você, em toda a sua perfeição, e agora os registros inventados de você ficaram arquivados em mim. Eu pensei que tinha você na palma da minha mão. Me enganei. Não tenho nenhum controle sobre o que imagino.
Não me vejo como Frankenstein, embora tenha te criado dos pedaços dos meus mortos; mesmo querendo ter domínio de quem você é, eu jamais te deixaria quando percebesse a força que você de fato tem. Eu não te abandonaria na solidão onde você viraria monstro.
Me sinto mais a criadora, que te moldou com palavras, empilhando verbo sobre verbo para te dar uma coluna onde se sustentar. Cada sussurro imaginado escrito na pele fica marcado na carne. Eu assino sua autoria, mas você me desautoriza. Você que também tem mãos que eu dei, usou as palmas e as impressões digitais para me transcrever. Foi você que se fez monstro, enquanto deixei suas palavras me criarem, e agora eu sou uma nova criatura.
Nem mulher, nem homem, nem monstro, nem ser divino, nem mundano, nem anjo, nem demônio.
Só criatura e criadora de alguém que não existe. Encarnada em mim, desalmada por você. Coração pulsando só quando nos damos beijos elétricos. A eletricidade sempre procura um corpo no qual se descarregar. Nos encontramos em pensamentos, nos manifestamos na carne.
Eu também sou inventada por você, e você nem sabe o poder que tem sobre mim, meu criador, minha criatura.
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